São Paulo, quarta-feira, 7 de agosto de 1996
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"Documento eu salvei", diz frentista

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

"Tem certos cachorros que é melhor que a gente", disse, miúdo e resignado, o sobrevivente do incêndio Valmir de Santana 26, frentista, salário de R$ 200,00, o filho pequeno adormecido em seu colo.
Eles não são cachorros. Mas podiam ser gatos: "Documento eu salvei. Tava num lugar fácil lá, eu gatinhei e peguei", Santana contou à Folha, sentado no meio dos escombros.
Eles não são turcos nem libaneses, mas eram o material mesmo do churrasquinho de gente ocorrido na madrugada de ontem na avenida Nagib Farah Maluf -mesmo nome de Paulo Salim Maluf, o prefeito de São Paulo, cidade feia na direção de Vila Formosa, Cidade Líder, Itaquera, essas periferias.
Eles não são turcos nem libaneses, mas são os novos ciganos brasileiros e urbanos, os ciganos forçados, nômades por necessidade. Dos 20 com quem conversei, somente um tinha nascido em São Paulo.
Todos os outros tinham vindo de longe, de Souza (Paraíba), Garanhuns (Pernambuco), Monte Santo (Bahia), Arneróis (Ceará), Lagoa Grande (PE), Triunfo (PE), um verdadeiro mapa do Nordeste.
Dali foram para a favela do Parque Novo Mundo, de onde foram expulsos no ano passado pela Prefeitura de São Paulo e levados para o Ginásio Pelezão, na Lapa. De lá, foram mandados para os galpões da construtora CBPO, na Cohab José Bonifácio.
Ali, encontraram outros sobreviventes, os do incêndio da favela da ponte do Tatuapé, que também pegou fogo em 1995.
Agora estão lá desolados, no rescaldo do novo incêndio, novamente nômades -os homens-tijolos, homens-cimento, homens-ferro dos galpões, paus-para-toda-obra.
Eles são estampadores, garis, calungas de caminhão (trabalhador de carroceria), frentistas e carregadores de ferro velho. Os salários variam de R$ 152,00 a R$ 212,00, até R$ 300,00.
Estão revoltados --"Maluf tá bom de ser queimado também. Ele agora tá satisfeito, são 11 a menos pra ele. Ele queria que morresse todo mundo", Valmir de Santana comentou- com a promessa não cumprida de que receberiam apartamentos do projeto Cingapura.
A pior das misérias é essa instituída, autorizada, armazenada em cubículos de madeira de 3 por 2, onde se aglomeram pai, mãe e sete filhos. Os galpões lembram um campo de concentração nazista, o de Dachau, que conheci em Munique, Alemanha.
Trata-se da miséria sabida e autorizada, oficializada pela autoridade, do prefeito e do vereador à assistente social. É a miséria geograficamente calculada, assim como quem escolhe a carne e o molho do churrasco.

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