São Paulo, quinta-feira, 29 de agosto de 1996
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Jean-Luc Godard tenta chegar a Sarajevo

JEAN-MICHEL FRODON
DO "LIBÉRATION"

É um retorno atravessado, um "efeito espelho" por acaso e por necessidade, como se urdem e se nutrem as obras dos grandes artistas -as de Jean-Luc Godard mais do que as de outros. Um artigo de Philippe Sollers sobre Marivaux, publicado em 1994, foi de certo modo o ponto de partida de seu novo filme, "For Ever Mozart".
"O pequeno Sollers", como o chamam no filme, dizia que teria sido melhor ir a Sarajevo produzir "Le Triomphe de l'Amour" do que "En Attendant Godot", com direção de Susan Sontag. Ouvindo isso, Godard resolveu tentar penetrar a cidade assediada.
Os personagens não chegam até a cidade, mas o filme, sim, por meio de um festival organizado pelo "Le Monde" e por aquela que já foi a própria casa do cineasta, a revista "Cahiers du Cinéma".
No filme há a Europa e a Europa. A Europa ocidental, transbordando de dinheiro, obscenidade e poder, e a Europa oriental, da guerra.
O filme mostra os que partem e os que ficam. Os que ficam, os velhos, os que possuem meios, vão fazer cultura, um grande filme europeu, que se assemelha a eles e se intitula "Le Boléro Fatal". Humilhações, traições e tentativa de reciclar os cadáveres dos outros.
História em movimento
Os outros, os jovens, partiram; é uma odisséia mais próxima de Joyce do que de Homero -infelizmente para nós, é o momento que o pede. Aprenderemos com isso que é menos desonroso se deixar acuar pelos sérvios que chafurdar no espetáculo.
O filme se constitui de dois pequenos trechos de narrativa. Aqui, a história estática daqueles que fazem "Le Boléro Fatal" e terminarão, à força do gangsterismo, no atoleiro do fracasso comercial, frente a frente com Hollywood. Ali, a história em movimento de Camille, sua hora de verdade e de filosofia, num lamaçal ex-iugoslavo. Mas resta a música.
No cinema costuma-se chamar tudo de som: tiros, beijos, "sabe que você tem olhos bonitos?". Aqui, tem-se vontade de chamar tudo isso de música. Sem dúvida porque foi composto, mas sobretudo porque trechos de textos literários, poéticos e filosóficos, de música clássica, frases escritas por Godard, trocadilhos, línguas estrangeiras, tudo é dirigido.
Livros
Quando ofereceu seu filme a Sarajevo, Godard pretendia comparecer à cidade. Mas um incidente o levou a renunciar à viagem.
Como o ator previsto foi embora, Godard assumiu de surpresa o principal papel masculino de "Nous Sommes Tous Encore Ici", que Anne-Marie Miéville está filmando.
As duas vertentes do filme (a filmagem de uma superprodução calamitosa e a viagem dos jovens à Bósnia em guerra) vêm, na realidade, de dois projetos diferentes que terminaram por se encontrar.
"Eu pretendia fazer um filme em Portugal, chamado 'Le Film de l'Intranquilité', em homenagem a Pessoa, mas fui obrigado a desistir do projeto. Seria uma espécie de canção de gestos, os gestos do cinema. Depois saiu o artigo em que Sollers falava de Sarajevo, que me deu a idéia da outra parte. Me pareceu possível tentar juntar as duas abordagens", diz.
"O título vem de ainda outro projeto inacabado, que deveria partir de um concerto de Keith Jarrett. Mas são apenas pontos de partida; mais tarde outros elementos interferem", afirma.
"O filme produz essas interações, pequenos pedaços de sentido que não estavam previstos. 'For Ever Mozart' é um filme que avança veloz, mas não por meio de pequenos planos, como em Oliver Stone. Ele avança rápido mas ouvimos tudo várias vezes, a ponto de não mais prestarmos atenção, como numa música não se repara no reaparecimento dos mesmos grupos de notas."
Jean-Luc Godard não fala dos sentidos abundantes de seu filme. Mas comenta a moral com a qual ele termina, evidentemente mostrada mas não enunciada. "É preciso aprender a virar a página", afirma.
Desencantado -mas não só isso-, ele faz questão de sublinhar que outra interpretação seria "é preciso aprender a ler os romances sem estragar os livros".

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