São Paulo, domingo, 22 de setembro de 1996
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O mistério de Varda

CARLOS ADRIANO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Godard, Truffaut, Resnais, Rohmer, Chabrol: a Nouvelle Vague, capítulo básico da história do cinema, parecia ser mesmo um clube do bolinha. A única voz feminina, integrante do coro disparatado que desafinou a "qualidade" do filme francês anos 50, era Agnès Varda.
Única e pioneira, pois "La Pointe Courte" já anunciava o movimento daquela nova onda. Filmado em 1954, ano em que Truffaut começou a esbravejar contra o cinema "burguês", e quatro anos antes da renovação explodir nas telas, era a primeira produção de uma diretora sem conhecimentos cinematográficos. A montagem esteve a cargo de Alain Resnais (então autor de célebres curtas).
"Varda por Agnès" é uma mostra "autorizada" (na Cinemateca Brasileira, em São Paulo, a partir do dia 27): a própria diretora escolheu os filmes e os escalou em programas temáticos. Pena que alguns ficaram de fora, como "Salut Les Cubains" (1963) e "Black Panthers" (1968) (exemplos da poética política da diretora), o inédito e interdito "Nausicaa" (1970) (documentário-ficção sobre exilados gregos), o díptico "Jane B. par Agnès V." e "Kung-Fu Master" (1987) (feito com a atriz Jane Birkin) e o deslumbrante "Mur Murs" (1980).
Agnès Varda nasceu na Bélgica (1928), de origem grega e francesa. Formou-se fotógrafa. Fez fama com instantâneos de anônimos, de famosos (Ionesco, Fidel, Aragon), de lugares (China, Ouro Preto, San Francisco). Foi aluna de Bachelard (Sorbonne, 1946-47), cujos livros carrega sempre consigo "para protegê-la da imbecilidade".
Varda encontrou pela primeira vez alguns membros dos "Cahiers du Cinéma" em 1954-55, quando Chabrol, Truffaut, Rohmer, Brialy, Doniol-Valcroze e Godard reuniram-se na casa de Resnais. Ela relembra: "Eu seguia mal a conversa. Eles citavam mil filmes e propunham não sei o que a Resnais, todos falando rápido, tagarelando animadamente. Eu estava ali como por anomalia, sentindo-me pequena, ignorante, e a única garota entre os rapazes".
Foi na mesa de um café, durante o Festival de Tours (1958), que Varda conheceu o também diretor Jacques Demy, com quem se casou e viveu até a morte dele.
Por essa época, via Demy, Varda conheceu Jean-Luc Godard. "Ele tinha dois prenomes de apóstolos e um nome incluindo Deus e Arte (Ard com um d para que se pudesse dizer árduo)". Os casais Jean-Luc & Anna (Karina) e Agnès & Jacques costumavam passar as tardes de domingo jogando cartas.
Em "Cléo das 5 às 7" (1961), que trabalha a temporalidade cinematográfica numa duração mimética, o par Karina-Godard atuou num curta burlesco inserido no filme principal. Mais que um caso de amor à mercê do acaso, para Varda este momento "simboliza a Nouvelle Vague tal como nós a vivíamos, a imaginação no poder e a amizade em ação".
Os registros de Varda são mediações elaboradas, reflexões deliberadas. Seus filmes de ficção são vazados por procedimentos documentais. As estratégias narrativas da diegese ficcional são rarefeitas pelo discurso-depoimento-comentário.
"Sans Toit ni Loi" (no Brasil: "Os Desajustados", 1985), contundente e atual, acompanha o percurso errático e inóspito de uma sem-teto (Sandrine Bonnaire) por paisagens factuais e testemunhos verdadeiros. Na obra de Varda convivem, depuradas, duas faces de felicidade: a expressão lírica e a manifestação engajada.
A transformação da matéria real em imaginário pessoal manifesta-se nos filmes de encomenda como "Du Côté de la Côte" (1958) (reverso da Riviera que encantou o Godard crítico) e "Les Dites Cariatides" (1984) (passeio de Baudelaire pelas mulheres-de-pedra de Paris), nos filmes de memória familiar como "Oncle Yanco" (1967) (sobre um pintor-ícone da contracultura) e nos filmes de memória afetiva cinefílica, como "Jacquot de Nantes" (1990) (sobre o jovem Demy) e "Les Demoiselles Ont Eu 25 Ans" (1992) (sobre "Duas Garotas Românticas" de Demy).
Orientando-se por seu mote "o olhar faz o autor", Varda constrói sua imaginação com observações e histórias do real, projetando "variações imaginárias" na base documentária. Assim como articula em sua obra as diferenças complementares entre fotografia (imóvel e muda) e cinema (móvel e falante), opera uma dialética sutil entre subjetividade e objetividade.
"Poderia se dizer que o real faz seu cinema". Varda propõe ver na vida o próprio filme. Ela acredita na inspiração que vem de uma vivência imediata. É o que chamou de "documentário subjetivo", depois de "L'Opéra Mouffe" (1958), o primeiro filme em que sentiu fazer "o belo ofício de cineasta". Nesse diário de impressões, a diretora grávida gestava também uma dialética com tomadas "improvisadas" e "ensaiadas" tornadas indiscerníveis ("uma forma de cinema, entre a verdade de um Cartier-Bresson e os devaneios de um cinema underground").
Nos filmes de Varda, a emoção fica por conta de um artifício mais propício que o mero efeito especial. Em sua abordagem, brechtiana afetuosa, eterniza e humaniza os objetivos imaginários, deixando-os "eventualmente viverem suas vidas e guardarem seu mistério", imprevistos e livres.
A escritura cinematográfica curiosa, de inflexão "existencialista", pode ser a chave dessa predisposição generosa e magnética às coisas do mundo. A diretora é demiurga provisória, aberta à graça do acaso e do humor. Sua ética é sua profissão de fé: "Eu me vejo como uma autora sem certezas".

A MOSTRA
A mostra "Varda por Agnès" acontece do dia 27/9 a 3/10, na Sala Cinemateca (r. Fradique Coutinho, 361, São Paulo, tel. 011/570-7840).

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