São Paulo, domingo, 22 de setembro de 1996
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A crítica diante da barbárie

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

Desde que "Tieta" entrou em cartaz, até antes, a cena se repete. Pelos jornais, pelos cantos, pelos bares, acusa-se Diegues de oportunismo, por adaptar Jorge Amado, por usar um romance que já foi até novela de televisão. Além disso, com que direito chamar Sonia Braga para o papel principal? Por que perversa razão usar Ocimar Versolato como figurinista? Por que voltar ao velho cinemão e fazer um filme de US$ 5 milhões? Por que os jornais dão espaço a Caetano Veloso, o músico do filme?
Não são propriamente questões. É um desejo pessoal de linchamento, uma torcida para que o filme seja ruim, que se transforma num corpo de superstições. Ainda que somadas, não chegam a articular um pensamento minimamente racional. Expressam no máximo uma desconfiança em relação ao "marketing" do filme. Os mais espertos ao menos reclamam disso mesmo: o filme é um vasto exercício de "marketing".
Essas vozes indignadas não se manifestam quando os mesmíssimos jornais entrevistam Tom Cruise, quando se lança "Missão Impossível" (um filme notável, o que é outra história). Essas vozes intrépidas não se fazem ouvir quando James Cameron gasta US$ 100 milhões para fazer um filme.
Mas Cruise, Cameron, são Hollywood. "Outra realidade", como se diz. Uma realidade que não se conhece.
Com o filme brasileiro é diferente. Conhecemos, ou julgamos conhecer, a realidade. Nos achamos um pouco co-autores dos filmes, pensamos poder dizer como o roteiro deve ser, como os atores devem interpretar, qual deve ser o orçamento.
Ignoramos alegremente que o cinema nacional vem de dez anos de estagnação e mais cinco anos de inexistência completa. Que "Tieta" é uma das primeiras produções a sair do circuito Espaço Unibanco/Cinesesc. E que os filmes feitos recentemente ainda tateiam, em busca de uma sintonia com o espectador.
São questões críticas, que envolvem modos de produção, internacionalização ou não, revisão de caminhos etc. Mas sobre esses aspectos de fundo, silencia-se. A única preocupação -imitando a moda publicitária- é gritar mais alto, como se o grito pudesse ocupar o lugar do raciocínio.
O caso mais recente é o de Marilene Felinto. Romancista de prestígio, Marilene teria plenas condições de pegar a câmera, à maneira de Marguerite Duras, e dizer o que tem a dizer em imagens.
Mas não. Opta por arremeter com fúria sanguinária contra filmes brasileiros em geral (ou, pior, que acredita serem brasileiros. Marilene fala, por exemplo, de "O Monge e a Filha do Carrasco" como um filme brasileiro falado em inglês, quando é uma co-produção, com capital americano, feita por atores e diretor brasileiro, o que é algo diverso, senão oposto).
Voltando a Diegues, cujos movimentos parecem despertar suspeita automática. É mera ridicularia pretender aprioristicamente que existe facilidade comercial em filmar "Tieta". Pergunte ao mais ingênuo dos seres na rua se ele tem uma idéia de "Tieta". Ele tem. Ele viu a novela. Ou leu o romance. Ou ambos.
É a essas imagens que o filme terá de suceder e de certo modo se contrapor, para existir. No que consiste a facilidade disso?
Eu assinaria embaixo, aliás.
Mas não é isso que se diz. Acusa-se Caetano de "interessado" no filme (como se ele devesse gostar do filme porque fez a música, e não fazer a música porque se interessou pelo filme -é ao menos uma hipótese a considerar). Acusa-se Diegues de fazer marketing, como se essa fosse uma atividade criminosa, como se cineastas devessem fazer filmes, cruzar os braços e pular de alegria ao ver as salas vazias.
Não é informativo, esse tipo de coisa, nem crítico. É só uma maneira de endossar o acriticismo vigente, a mania do "acho/não acho", a desinformação.
Sejamos claros: assim como o cinema ainda desconhece um academismo triunfante -algo que se imponha em definitivo como a maneira "certa" de filmar ou narrar-, também comporta uma parte de "acho/não acho". Como toda arte, a menos que se exclua a subjetividade, o que é literalmente impossível, nossa experiência pessoal é um ponto de referência básico.
Mas não pode ser o único. Chega a ser patético ver pessoas habitualmente inteligentes reclamarem das imagens "turísticas" de "Tieta". Ok. Mas o que são as imagens do "Tabu" de Murnau, então? E isso por acaso impede que "Tabu" seja um dos filmes mais belos jamais feitos?
Diante de um objeto artístico -precário ou não- o mínimo que se exige de alguém que tem a insana coragem de emitir um ponto de vista crítico é... que esse ponto de vista seja crítico. Que se procure entender o que alguém realizou e, dentro dos parâmetros desse entendimento, perceber o que há de bem ou malsucedido na empreitada.
Inevitavelmente erraremos, no mais. Inevitavelmente voltaremos atrás sobre alguns julgamentos, anos depois. Ainda assim, esse é o único solo plausível que se pode pisar, nessa matéria.
Caso contrário, vamos confundir a propaganda do filme com o filme, faremos mera contrapropaganda, cometeremos diatribes rancorosas, cheias de palavras ocas (cinema nacional, nacionalismo, renascimento, mundialização), já que aplicadas a conteúdos apenas imaginados, não apoiados em qualquer fato.
"Tieta", por ora, é só um filme. Nem o renascimento do cinema. Nem o esmagamento do cinema barato. Nem sinal de uma industrialização indesejável (ou desejável, tanto faz). Daqui a dez ou vinte "Tietas", talvez se possa saber se um filme caro suscita "sobras" de capital para produzir filmes mais modestos e eventualmente mais criativos. Ou se, ao contrário, o Brasil tenderá a fazer três ou quatro filmes grandes por ano e, com isso, aniquilar jovens talentos.
Saberemos se isso é bom ou mal para o conjunto da produção. Poderemos discutir, até, se é desejável o Brasil produzir imagens ou não. Por ora, é tudo chute. Não trata de um filme, nem de um sistema de produção, nada.
É um festival de sentimentos ofendidos pela simples existência da coisa. Seria justo, desejável, que essas pessoas se encontrassem, fundassem cineclubes, revistas, enfim, praticassem cultura cinematográfica, em vez de se darem por ofendidas.
Não vejo artigos indignados porque as cinematecas vivem na tanga. Ninguém se alarma porque se perdem negativos e cópias de filmes. Ninguém fica ruborizado quando aparece publicado que Antonioni se tornou famoso por suas imagens "espetaculares" (como se fosse uma espécie de Spielberg italiano). Ao mesmo tempo, inchamos de orgulho quando "O Quatrilho", com sua fraqueza atroz, concorre ao Oscar.
Basta, no entanto, estrear um filme que suscite desconfianças e uma multidão de andrés bazins surge do nada, com a última palavra a dizer.
"Tieta" é um caso atual e paradigmático. Não é o único, nem esse hábito se restringe a filmes nacionais. Quando Francis Coppola fez "O Poderoso Chefão 3", só faltou ser recebido a pedradas. Não interessava o filme. O fato de retomar a saga de Michael Corleone era, em si, prova de "oportunismo", de "comercialismo".
Quando Brian DePalma adaptou "A Fogueira das Vaidades", o filme foi execrado a partir da opinião do autor do livro, sem que, ao menos, se concedesse que a adaptação foi feita contra o livro.
Nesses casos, como no de "Tieta", pode-se aceitar muito bem que se tenha restrições aos filmes, ou que não se goste deles. Mas não é bem disso que se trata: em todos esses casos renunciamos à visão em troca de um prato pronto.
Quando Nelson Rodrigues era vivo, costumava ser tratado como um pornógrafo sem vergonha. Agora, imita-se desavergonhadamente seu estilo (sem suas idéias, claro). Glauber Rocha, vivo, era um fantoche do Golbery, vendido, canalha. Agora é um santo, um íntegro, que se opôs às mazelas da Embrafilme e condenou os rumos do cinema novo.
Queremos lendas, heróis, não pessoas de carne e osso, que podem errar ou acertar, fazer filmes que se aprecia ou não, mas que, antes de tudo, sejam vistos.
Tudo isso seria risível se não fosse tão rastaquera, se a cultura cinematográfica não agonizasse. Não dá para respeitar essa cultura do descompromisso, do comodismo. Ela desemboca na falta de critérios, de pontos de vista e, em última análise, de ética: na barbárie.

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