São Paulo, domingo, 22 de setembro de 1996
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Executores de ordens assassinas

JAVIER MARÍAS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Apareceu há algumas semanas nos jornais: um soldado sérvio da Bósnia, de 25 anos, chamado Drazen Erdemovic, que está sendo julgado por crimes de guerra perante o Tribunal Internacional de Haia para a antiga Iugoslávia, declarou-se culpado por ter assassinado centenas de bósnios muçulmanos no mês de julho passado no enclave de Srebrenica.
A notícia era ilustrada por sua fotografia, um jovem de aspecto inteiramente normal, até mesmo agradável, com o olhar perdido e os lábios cerrados de quem está ruminando seus pensamentos.
A este jovem lhe espera uma provável condenação à prisão perpétua, ainda que o juiz, depois de ouvi-lo, tenha convocado uma nova sessão do tribunal para determinar as possíveis circunstâncias atenuantes que poderiam ser aplicadas ao processado. Isto quer dizer, suponho, que em princípio o magistrado acreditou nas palavras de Erdemovic. E, se acreditou, me pergunto porque este julgamento prossegue, ao mesmo tempo em que comprovo que, se fosse suspenso e libertado o réu e sobrestado o caso, eu mesmo me escandalizaria e pensaria que havia alguma treta e farsa.
Esta não é uma questão fácil, a da "obediência devida". Se não estou mal informado, creio que atualmente a desculpa de ter se limitado a cumprir ordens não serve para escusar quem tenha cumprido ordens claramente delituosas ou criminosas, como estamos vendo na Espanha há alguns anos no caso GAL (Grupos Antiterroristas de Libertação), e me parece correto que assim seja, já que os torturadores e assassinos dos "etarras" (membros do grupo basco ETA -Pátria Basca e Liberdade) Lasa e Zabala, por exemplo, não teriam sido fuzilados em tempos de paz e em um país democrático se tivessem se recusado a cumprir as repulsivas instruções de seus superiores.
Mas, em uma guerra... Diferentemente de Pérez-Reverte, aqui ao lado, eu não vi nenhuma guerra, ou somente as dos filmes. Mas lembro-me de ter ouvido em um deles -talvez em "Glória Feita de Sangue", de Kubrick, ou em "Sargento York", de Hawks, de qualquer maneira era sobre a guerra de 1914- umas frases que me pareceram muito verossímeis, e que diziam o seguinte: "Se os soldados atacam em uma batalha, se saem de suas trincheiras e correm como loucos ao encontro de uns tipos que estão vindo em sua direção como coelhos, não é porque nestes momentos estejam cheios de amor por sua pátria, nem convencidos de que a sorte de suas famílias depende de que eles tomem uma colina, nem porque sejam impulsionados pelo ódio, nem sequer porque vejam com clareza que ou matam o inimigo ou por ele serão mortos. Na hora da verdade, nada disto tem a força suficiente para fazer com que alguns homens se lancem ao precipício. Fazem-no somente porque temem mais ainda os que estão às suas costas, seus superiores, e porque sabem que, se avançam, sua morte é provável, mas se retrocedem ela é segura".
Eu não posso evitar me perguntar o que teria feito na pele deste Erdemovic, a quem, se nele acreditamos, repugnou matar centenas de muçulmanos bósnios e mesmo assim o fez. Nem todo mundo tem índole de herói, menos ainda de mártir. Imagino Erdemovic jogando sua arma ao chão e dizendo: "Não dispararei contra esta gente; ponham-me ao seu lado e acabem comigo, prefiro".
Não, a verdade é que me custa imaginar esta cena na vida real, em que não há espectadores que se comovam com o gesto nobre e o aplaudam e depois sigam para casa, reconfortados e se sentindo um pouco melhores por ter assistido semelhante prova de retidão e sacrifício. Os únicos espectadores desta hipotética sessão teriam sido as outras vítimas, que não teriam podido contá-la, e os verdugos, que não contam nada. Ninguém faz cenas para seus verdugos.
Suponho que nos momentos cruciais das guerras se pensa somente em sobreviver, em passar de um minuto ao seguinte, e deste ao que se segue, e deve-se pensar, se é que na realidade se pensa: "Enquanto eu estiver vivo, tudo pode se arranjar". O arranjo, por exemplo, de comover alguns juízes e conseguir talvez uma atenuante, ou o de que haja gente como eu, fazendo-me perguntas e escrevendo artigos como este.

Tradução de Ricardo de Azevedo.

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