São Paulo, domingo, 22 de setembro de 1996
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Roubos e cigarros

CARLOS HEITOR CONY

Rio de Janeiro - Das tábuas da lei que Moisés descolou no Sinai, dois mandamentos parecem os mais explícitos e, na realidade, são os mais complicados.
O "não matarás" e o "não roubarás", em princípio, são elementares. Não precisam de muita interpretação para serem entendidos pela consciência e pela razão.
Ledo e ivo engano. Pode-se matar em legítima defesa, pode-se matar em caso de guerra justa (o que é guerra justa?), o Estado pode matar o criminoso para puni-lo, para evitar novos crimes e para advertência aos demais.
Como se vê, o mandamento é um queijo suíço cheio de furos. O "não matarás" talvez ficasse mais claro se copidescado para "matarás" -desde que complementado com as inúmeras exceções: matarás em legítima defesa, matarás em caso de guerra justa, matarás para punir os maus etc.
Bem, e o "não roubarás"? Quando e como se pode ou se deve roubar? Por exemplo: a tese da legítima defesa vale também para o roubo? Jean Valjean roubou um pão, passou anos na prisão e inspirou Victor Hugo a escrever "Os Miseráveis". E ele roubou em legítima defesa: tinha fome.
Pulo para Jânio Quadros, que alguns suspeitavam de ter roubado alguma coisa. Durante anos o ex-presidente não tinha trabalho visível e vivia em relativa abastança. Ao que parece, por conta dos direitos autorais de uma gramática. Um jornalista o abordou e perguntou-lhe diretamente. Jânio olhou-o, sério, pediu-lhe um cigarro. Depois pediu fogo. O jornalista acendeu-lhe o cigarro. Só então Jânio respondeu: "Fiz exatamente isso. Pedi e me deram".
Nem sei por que lembro essa história, que pode ou não ser verídica, mas é reveladora. Não do caráter do finado Jânio Quadros, mas da mentalidade genérica de um político em atividade. Ignoro se Sérgio Motta fuma. Fumando ou não fumando, a turma não está se recusando a lhe dar cigarros e fogo.

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