São Paulo, domingo, 29 de setembro de 1996
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Sobre originalidades e paradoxos

ROBERTO CAMPOS

"Quem não aplica remédios novos deve esperar novos sofrimentos, pois o tempo é o grande inovador"
Francis Bacon
O Brasil se caracteriza por originalidades desnecessárias e paradoxos mortificantes. Citemos duas originalidades e dois paradoxos. Uma originalidade, é sermos o único país que prefere importar petróleo a importar capitais para produzi-lo. Outra é sermos, junto com a ex-Iugoslávia, o único país que tem uma justiça especializada do trabalho, à qual cabe não apenas julgar "conflitos de direitos" mas também dirimir conflitos econômicos.
Vemos agora aos paradoxos. Um deles é sermos um país de salários baixos e mão-de-obra cara, em virtude da tríplice cunha -a burocrática, a fiscal e a previdenciária- que subtrai dinheiro que deveria ir para o bolso do trabalhador. Um segundo paradoxo é o "prêmio à sabotagem", resultante da recente decisão do presidente da República de confiar à Petrossauro a execução do gasoduto Brasil-Bolívia, projeto a que ela se opôs durante 30 anos. FHC ou desconhece o histórico do projeto ou foi engazopado pelo corporativismo estatal, que não deseja competidores no transporte e fornecimento de gás natural. Os financiadores internacionais -BID e Bird- preferem que o empreendimento seja privado, até mesmo para estabelecer competição entre o petróleo estatal e o gás privado.
O atual governo, além de lento nas privatizações que poderiam aliviar a crise fiscal, não têm explorado as virtualidades da "regulamentação" para redução do custo Brasil e aumento de competitividade. Sugestões interessantes a respeito emergiram do seminário sobre "Custos de Transação no Mercado de Trabalho Brasileiro", realizado pelo Instituto Liberal e pela Fundação Álvares Penteado, em São Paulo, em setembro último. Um estudo apresentado pelos professores Roberto Fendt e Amaury Temporal dramatiza os custos absurdos da regulamentação trabalhista no Brasil. Nosso sistema incentiva conflitos, ao invés de resolvê-los. Em todos os países economicamente importantes, os "conflitos de interesses" (nível salarial e produtividade, por exemplo) são solucionados por meios não judiciais - mediação e arbitragem. É que não se espera que os juízes entendam de macroeconomia, organização gerencial ou produtividade. Só os "conflitos de direito", isto é, os relativos à interpretação de leis e contratos é que vão à Justiça comum (pois inexistem tribunais especializados para o trabalho). É limitadíssimo o número de casos que passam do processo arbitral ao Judiciário. Em 1991, por exemplo, foram ajuizados na Justiça comum, japonesa apenas 1.000 processos trabalhistas contra 1.496.829 no Brasil. Em 1994 na Inglaterra e França, os litígios na primeira instância da Justiça limitaram-se a 167.000 e 152.000 respectivamente, quando no Brasil nos aproximávamos de 2 milhões. O engessamento minucioso das relações trabalhistas pela CLT de Getúlio e a permissividade da Constituição de 1988 transformaram o trabalhismo brasileiro numa fábrica de conflitos.
As consequências disto são custos altos, morosidade na solução dos conflitos e baixa previsibilidade. Reduz-se assim a taxa de "empregabilidade" no setor formal. Hoje, mais da metade da mão-de-obra está no setor informal, o que significa que a tentativa governamental de proteger demasiado o trabalhador acaba protegendo-o de menos.
Aumentar a taxa de "empregabilidade" é, aliás, uma preocupação mundial, principalmente na Europa, onde se combinam a excessiva generosidade do "welfare state" (que se tornou insustentável pelo envelhecimento da população) e a inflexibilidade da legislação trabalhista (que desencoraja contratações). Um dos casos mais agudos é o da Alemanha, cujos custos de mão-de-obra têm levado as indústrias a transferir seus projetos de expansão para os Estados Unidos. Ásia e América Latina. Somados salários e benefícios, o custo de um operário alemão é de US$ 30 por hora, contra 24 no Japão, 17 nos Estados Unidos e 14 na Inglaterra. O chanceler Kohl propôs uma elevação da idade da aposentadoria, a diminuição ao auxílio doença e limitação das pensões, objetivando um corte de despesas governamentais da ordem de 2% do PIB, usando a folga para reduzir impostos que oneram as empresas. Embarcou também num processo de maciça desregulamentação, pela extinção de cerca de 84.000 regulamentos federais restritivos da liberdade empresarial.
O que é mais surpreendente, entretanto, é que os países em desenvolvimento da Ásia, supostamente de mão-de-obra barata e disciplinada, começam a ser objeto de reavaliação negativa. Segundo a Perc, firma de consultoria de Hong Kong, numa pesquisa entre gerentes de multinacionais analisada na revista "The Economist" (21/9/96), os atrativos desses países diminuem muito se ponderados conjuntamente quatro atributos da mão-de-obra - salários, qualidade, disponibilidade e rotatividade. Só dois países -Índia e Filipinas- ficam com notas favoráveis, quando comparados aos Estados Unidos, Inglaterra e Suíça. A Malásia, a Indonésia, a Tailândia e a própria China, começam a perder suas vantagens comparativas em função da inadequada qualidade ou inconfiabilidade da mão-de-obra.
Na América Latina, o país onde é mais urgente melhorar-se a "empregabilidade" é a Argentina. Em entrevista recente no Brasil, o ex-ministro Domingo Cavallo reconheceu que uma das falhas do processo de estabilização em seu país foi não se ter buscado, lá no primeiro pacote de reformas, uma flexibilização das relações trabalhistas. Hoje, a taxa de desemprego é de 17%, como resultado de uma superposição de fatores: o ajuste recessivo para absorção do impacto negativo da crise do México, a revolução tecnológica poupadora de mão-de-obra, e "last but not least", o impacto das reformas estruturais de privatização e flexibilização que eliminaram empregos improdutivos nas burocracias estatais. O que era subemprego disfarçado, se transformou em desemprego aberto, fenômeno que também se manifestou agudamente nos países ex-comunistas, quando tentaram modernizar suas economias. O Chile, aliás, teve experiência ainda mais dolorosa no seu processo inicial de ajuste entre 1982/84, quando sua taxa de desemprego superou os 20%.
Aumentar a taxa de "empregabilidade" tornou-se um imperativo existencial no país vizinho (o mesmo nos acontecerá em breve). Isso forçou o governo a propor medidas politicamente impopulares de flexibilização trabalhista, através de contratos temporários de trabalho com dispensa de contribuições sociais, liberdade de organização sindical e mesmo a criação de duas fatias salariais: uma fatia básica estável, e uma flexível, para permitir às empresas enfrentarem conjunturas desfavoráveis de mercado. Esse, aliás, o segredo das empresas japonesas, que exibem desemprego menor que no Ocidente.
No Brasil, a inempregabilidade resultante dos encargos trabalhistas se tem traduzido menos em desemprego aberto do que num enorme crescimento da economia informal. Mas, obviamente, a informalidade é má solução: desmoraliza o sistema fiscal, torna ilusórias as garantias trabalhistas e cria no cidadão o hábito de viver à margem da lei.
A elevação de nossa taxa de "empregabilidade" exige reformas tão importantes quanto a administrativa, a fiscal e a previdenciária. No aludido seminário do IL-FAP, foi proposto um ousado elenco de medidas de desregulamentação da legislação trabalhista, envolvendo a abolição da unicidade sindical, a extinção da compulsoriedade da contribuição, a ampliação do contrato coletivo de trabalho, a flexibilização da jornada de trabalho e a reestruturação da Justiça do Trabalho, a qual se limitaria ao julgamento dos conflitos de direito, como acontece no resto do mundo civilizado. É ilusório pensar que essas reformas são opcionais. Se não as fizermos estaremos nos condenando à mediocridade e renunciando à modernidade.

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