São Paulo, domingo, 29 de setembro de 1996
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Reaprendendo a ler os jornais

ALOYSIO BIONDI

Tarde chuvosa em São Paulo, semana passada. Após anos de distanciamento, Ana Lícia, a austera professora de grego da USP, visita o jornalista Daniel Lobato, amigo de longa data, em sua casa. Trocados os abraços de praxe, ela dispara:
- Você está pessimista demais em seus artigos. Tem muito ex-ministro, economista e jornalista dizendo que a economia vai bem. E os títulos dos jornais falam de tanta coisa boa, não mostram toda essa crise de que você tanto fala...
Daniel Lobato hesita um momento. Depois, toma a querida professora pelo braço, e a conduz até seu escritório. Separa alguns e começa a explicar:
- Olha, Ana Lícia, para saber o que está acontecendo na economia brasileira hoje em dia, você tem de entender uma coisa: desde a posse de FHC, há um jornalismo totalmente diferente. Antes do governo FHC, os jornais seguiam algumas regras: as manchetes eram as notícias mais importantes, que também iam para a primeira página; da mesma forma, as matérias começavam com a informação mais importante; e, obviamente, os títulos das matérias também.
- É claro. Para informar o leitor, a sociedade, os jornais devem destacar aquilo que é importante. É óbvio e...
Lobato sorri e, brandindo um jornal nas mãos, pede calma:
- Pois hoje não é assim. Você tem de reaprender a ler os jornais. No governo FHC, predomina um misto de jornalismo cor-de-rosa com jornalismo chapa-branca. Ou seja, as manchetes, títulos e começo das matérias quase sempre trazem uma informação positiva qualquer. O fato importante, se for negativo, é escondido no meio ou fim do texto. Com isso, com essa técnica informativa/desinformativa, o leitor fica com a impressão de que "tudo vai bem", e só jornalistas "catastrofistas" falam em crise.
Cética, Ana Lícia pondera:
- Não quero acreditar. Isso seria manipulação da opinião pública.
- Pois então vou lhe dar exemplos. Veja esses jornais do dia 24 de setembro. Dê uma olhadinha nessa notícia aqui: o que diz o título?
- É otimista? Diz: "Vendas diárias estão em alta em setembro". Com um muxoxo, o jornalista retoma a palavra:
- Muito bem. Agora, vamos ler o texto. O começo diz que o número de consultas ao SPC cresceu, e isso seria um sinal de aumento nas vendas, o que já está errado. Mas veja agora a segunda metade do texto da notícia: "Nas contas da federação do comércio, agosto deveria ficar entre 7% e 8% superior a julho. O resultado final indicou faturamento 1,36% maior..."
- Pera aí, pera aí. O título fala em vendas em setembro, e de repente, sem mais nem menos, fala-se em aumento de 1,36% em agosto...
- Pois é. É essa a tática do jornalismo cor-de-rosa que tanto agrada a equipe FHC. A notícia do dia era a revelação dos resultados de agosto. Como o resultado foi péssimo, com apenas 1,36% de avanço sobre julho, apesar do Dia dos Pais, esconde-se a informação, "jogada" sem mais nem menos em poucas linhas no meio do texto. O leitor nem percebe...
Ana Lícia murmura:
- Sim, eu me lembro agora. Na época do Dia dos Pais, jornais chegaram a dar em manchetes de página falando em aumento de 20% nas vendas. E eram só consultas ao SPC....
- Da mesma forma que, em maio, manchetes falavam em aumento de 55% nas vendas do Dia das Mães. E, mais tarde, foi noticiado escondidinho que elas haviam até caído...
- E os ex-ministros, economistas e jornalistas otimistas?
- Precisam reaprender a ler os jornais. Se bem que, em alguns casos, o otimismo tenha outras explicações.

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