São Paulo, domingo, 29 de setembro de 1996
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Proer estadual traz subsídio de R$ 54 bi

CELSO PINTO
DO CONSELHO EDITORIAL

Estimativa é de Cláudio Haddad, do Garantia, que, ao avaliar o Real, critica o ajuste das contas públicas

O pacote de ajuda aos Estados pode custar ao governo federal R$ 54 bilhões em subsídios, calcula Cláudio Haddad, 50 anos, sócio e principal executivo do Banco de Investimentos Garantia.
É muito dinheiro, e embute uma injustiça: a população dos Estados que foram prudentes e não se endividaram vai ajudar a pagar as contas dos Estados mais imprudentes.
Algo parecido ao que aconteceu com o Proer dos bancos privados, compara Haddad, quando todos ajudaram a cobrir os depósitos dos bancos ruins, inclusive dos investidores grandes, bem informados e que ganharam um juro a mais nesses bancos.
Haddad, diretor do Banco Central nos anos 80, teve, desde então, vários convites para voltar ao governo. O último que recusou foi do então ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso, para presidir a privatização no BNDES.
Normalmente avesso a entrevistas, Haddad foi um crítico de primeira hora, e influente, dos excessos da política de juros e da falta de um ajuste fiscal adequado. Ao contrário do governo, ele acha que o crescimento vertiginoso da dívida mobiliária, em títulos, do governo importa, e muito.
É uma dívida que pode ser transformada em moeda pelos investidores num prazo muito curto. A única garantia sólida que o governo tem para ela são as reservas cambiais. Só que, no início do Real, as reservas cobriam dois terços da dívida mobiliária; hoje, só cobrem um terço. O endividamento ficou duas vezes mais frágil.
Haddad, que comanda um banco com quase R$ 470 milhões de patrimônio líquido e R$ 5 bilhões em ativos, acha que falta concorrência entre os grandes bancos e isso explica, em parte, por que é tão grande a distância entre o que os bancos pagam aos investidores e o que cobram dos clientes.
Com a experiência do Garantia, um dos bancos brasileiros mais ativos no mercado externo, Haddad diz que, em geral, os investidores internacionais ainda estão confiantes no Plano Real.
Mas acha que o governo precisa ter "uma sensação de urgência" para fazer um ajuste fiscal para valer. E não basta a reeleição: se o custo para obtê-la for comparável ao do quinto ano do governo Sarney, então ela será inútil.
A seguir, os principais trechos da entrevista de Haddad:
*
Folha - O Plano Real, com deflação e investimentos externos recordes, está consolidado?
Haddad - Eu acho cedo para cantar vitória. Está indo bem, mas, no fundo, ele se baseia numa passagem muito bem-feita da moeda velha para a moeda nova, numa taxa de juros real muito elevada, acoplada a uma âncora cambial e a uma série de promessas de reformas e ajustes, a maioria das quais ainda não foi cumprida.
Folha - Você acha correto o governo federal fazer um pacote de resgate dos Estados?
Haddad - Precisa ver o que isso representa em subsídios e seu impacto redistributivo entre Estados.
Folha - De quanto é o subsídio?
Haddad - Não é fácil mensurar, mas pode-se fazer algumas tentativas. Como nenhum governo, principalmente estadual, poderia captar por 30 anos, então o refinanciamento por 30 anos oferecido já é, em si, um subsídio.
Folha - E o juro cobrado, de 6% ao ano acima da inflação?
Haddad - Deve ser comparado ao custo de mercado. O mais aproximado é o do C-Bond, um título da dívida externa brasileiro, que rende 12% ao ano, mas com um prazo médio de apenas sete anos e meio. Se formos usar esses 12% como custo comparativo de mercado e descontar o refinanciamento em 30 anos a essa taxa, e não aos 6% que serão cobrados dos Estados, o subsídio implícito poderia alcançar até 80% da dívida refinanciada.
Considerando que os Estados terão de pagar 20% da dívida à vista, vendendo ativos (empresas a serem privatizadas), o subsídio chegaria a até uns 60% do valor da dívida. Se o valor total da renegociação chegar a R$ 91 bilhões, o número que foi divulgado em Brasília, o subsídio chegará a uns R$ 54 bilhões.
Folha - É razoável dar um subsídio aos Estados de R$ 54 bilhões?
Haddad - Pode-se argumentar que, porque os Estados já não estão pagando, o subsídio existiria de todo modo. É questionável, contudo, o fato de que alguns Estados se comportaram bem, não emitiram dívida, foram prudentes e não estão tendo benefício algum, enquanto os que foram mais imprudentes no passado estão sendo mais beneficiados. Ou seja, há um problema redistributivo dentro da Federação.
Folha - Estados que foram mais austeros estariam pagando a conta de quem gastou demais?
Haddad - Sem dúvida.
Folha - Haveria uma alternativa melhor, considerando a autonomia federativa dos Estados?
Haddad - A rigor, cada Estado poderia fazer o ajustamento por conta própria, não precisaria o governo federal para dizer isso. É claro que, se nesse meio do caminho um Estado puder tomar carona em outro Estado, melhor para ele.
Folha - Qual a garantia de que os atuais governadores não vão embolsar subsídios, eleger sucessores, e os futuros governadores vão denunciar mais esse acordo?
Haddad - Esse é o perigo de um acordo assim. Ele é bom sob vários aspectos, porque impõe cronogramas de ajustamento, força uma aceleração da privatização, mas o risco é abrir uma nova capacidade importante de gasto, inclusive externa, em nível estadual, pressionando a demanda agregada, num momento em que o Real ainda não está consolidado na área fiscal.
Folha - Ou seja, você troca a possibilidade de os governos estaduais aumentarem seu endividamento a curto prazo pela promessa de se ajustarem em 30 anos?
Haddad - Exatamente.
Folha - O senhor acha correto chamar esse acordo de um "Proer para os Estados"?
Haddad - Acho que de uma certa maneira sim, porque é a população como um todo financiando casos específicos. Da mesma maneira que no Proer, para os bancos, os depositantes de todo o sistema e a população como um todo estão financiando os depositantes nos bancos ruins, toda a população brasileira está, agora, financiando as populações de Estados que tiveram problemas.
Folha - O pior da crise dos bancos já passou?
Haddad - Acho que sim. Eram problemas localizados em alguns bancos, principalmente no setor oficial, e que já foram, praticamente, todos resolvidos.
Folha - O Proer dos bancos foi um custo excessivo?
Haddad - Eu não acho que seja boa para a sociedade a eliminação completa de risco, como se fez no caso do Proer. Pode-se argumentar que um pequeno depositante, com pouca informação, poderia ser protegido. Mas não um grande depositante, que estava aplicando num banco com problemas porque ele estava oferecendo taxas mais elevadas.
Dizer que é preciso proteger qualquer depositante, a qualquer tempo, em qualquer montante, como foi feito no caso do Proer, não é correto. Principalmente porque o Banco Central criou um seguro para depósitos até R$ 20 mil. Não vou dizer que você poderia simplesmente abrir os braços e deixar acontecer qualquer problema, mas questiono muito a filosofia de garantir todo mundo e eliminar o risco.
Folha - Tanto no caso da crise dos bancos como na dos Estados, os juros altos foram a gota d'água para a crise. Juros tão altos foram justificados?
Haddad - Discordo que o principal problema dos bancos tenha sido a taxa de juros. Os bancos que tiveram problemas com o Real já tinham problemas há dez anos. Os juros foram apenas a gota d'água numa situação absolutamente insustentável.
A taxa de juros foi, sem dúvida, altamente artificial e é uma das âncoras do Real. Foi possível reduzir a inflação rapidamente porque a taxa de juros inicial foi cavalar, acoplada a uma valorização cambial e à abertura externa da economia, que foi o que segurou os preços num primeiro instante.
Folha - E a dosagem?
Haddad - Pode-se discutir a dose. Eu sempre fui crítico. Hoje, é preciso encarar com certo cuidado o problema dos juros. Na ponta da captação, os juros já caíram bastante: a taxa líquida para o investidor deve estar perto de 9% ao ano, ou até menos, se tirar os impostos. Não é muito diferente do que um investidor teria lá fora aplicando em papéis com risco semelhante.
O problema é que há uma diferença enorme entre a taxa de captação e a da aplicação, em todos os níveis, desde o empréstimo pessoal que está custando 8% ao mês, ao crédito para a pequena e média empresa, que custa uns 4% ao mês.
Folha - Por quê?
Haddad - Primeiro, você tem cunhas legais -impostos e compulsórios-, que hoje estão mais reduzidas, mas existem. Mais importante que essas cunhas, o alto "spread" bancário (a diferença entre taxa de captação e aplicação) é fruto de duas coisas: 1) uma legislação favorável ao devedor, ao lado de uma cultura do calote, e 2) falta de concorrência adequada.
A cultura do calote impera, patrocinada pelo próprio governo, ao longo dos anos. Além disso, as nossas leis sempre favoreceram muito, e ainda favorecem, o devedor, desde a época em que não havia correção na concordata, até hoje, quando a concordata é decidida normalmente em favor do devedor, a lei de falências é difícil de implementar e é difícil botar a mão em certas garantias. Nos países em que a lei favorece o devedor, os juros são, em geral, mais altas.
Folha - E a falta de concorrência?
Haddad - Ela é patrocinada pelo próprio Banco Central. A legislação do mercado financeiro é extremamente restritiva. As normas do BC restringem a concorrência, criam poderes de monopólio. Agora o BC está dificultando a formação de novos bancos, impondo capitais mínimos elevados.
Folha - O fato de terem surgido tantos bancos na época de inflação alta não ajudou a fragilizar o sistema?
Haddad - Isso é uma grande bobagem. Você pode ter um sistema de três bancos fortíssimos no qual, se um dos três quebrar, haverá um terremoto. Você não pode querer eliminar o risco na economia. É melhor ter 200 bancos porque, se quebrarem 20, isso não vai causar nenhum abalo grande.
Folha - Outra maneira de aumentar a concorrência seria abrir para bancos internacionais.
Haddad - É, eu acharia ótimo.
Folha - Os juros são altos por razões fiscais ou para atrair dólares?
Haddad - Os dois. Acho que existe uma razão fiscal. O BC foi cauteloso no sentido de impor uma taxa alta, a meu ver até alta demais no início, porque sabia que o problema fiscal estava fora de controle, como ainda está.
A taxa ainda é relativamente alta. Também visou atrair capitais estrangeiros, para favorecer expectativas e validar a âncora cambial. Isso explica por que as taxas de captação são altas, mas não porque o "spread" é alto: aí só se explica por aspectos regulatórios e microeconômicos.
Folha - Hoje tem gente em Brasília que acha que não é preciso mais manter juros tão altos para atrair dólares, porque estão entrando muitos investimentos diretos e as reservas podem baixar. O senhor concorda?
Haddad - Acho que as reservas estão sendo carregadas, de fato, a custo muito alto e não vejo problema de o Brasil reduzi-las, reduzindo, com isso, parte da dívida pública. Mas a taxa é alta também porque, com o déficit fiscal ainda fora de controle, se a taxa cair demais, vai aumentar a demanda e provocar pressões inflacionárias.
Folha - Quanto dá para crescer, com esse modelo de ajuste, sem colocar em risco o Real?
Haddad - Acho que com esse mix de políticas não podemos ter um crescimento acima de 3,5% ao ano, sem que haja novas pressões inflacionárias.
Folha - Se crescer 5% em 97, como se fala em Brasília, nós estaremos arriscando?
Haddad - Acho que 5% não é muito consistente com inflação cadente e o atual mix de políticas.
Folha - O déficit na balança comercial está caminhando para um número insustentável?
Haddad - Não. Acho que o déficit é tranquilo, comparado com o tamanho do comércio exterior e das reservas. O déficit público ainda é o problema fundamental, e o crescimento da dívida interna.
Folha - O governo tem argumentado que o que importa é sua dívida líquida, não a dívida mobiliária (em títulos). Está correto?
Haddad - Não, e a dívida interna é o grande calcanhar de Aquiles do Real. A dívida líquida, que mede o total da dívida pública menos os ativos e dívidas a receber, não é o relevante. Do ponto de vista financeiro, é um cálculo equivocado. Em alguns casos, como o do Proer, embora o governo seja obrigado a emitir títulos (dívida mobiliária), a dívida líquida não aumenta, porque o governo recebe ativos dos bancos e papéis como o Fundo de Compensação de Variações Salariais (FCVS).
Só que os FCVS não faziam parte da dívida mobiliária, não giravam no mercado; estavam esterilizados nas carteiras dos bancos e eram de vencimento de longo prazo. E os ativos que o governo pegou em garantia eram, em geral, podres. Contabilmente, embora tenha colocado um ativo contra um passivo, o passivo vale, mas o ativo nem tanto.
Folha - Ou seja, importante é a dívida mobiliária?
Haddad - O fundamental é que o estoque de papéis financiado no mercado a curto prazo aumentou muito e, se o público não quiser retê-la, ela pode ser monetizada (transformada em moeda) rapidamente. O único ativo também monetizável que o público aceitaria em troca dessa dívida são as reservas internacionais.
Folha - As reservas seriam uma espécie de garantia da dívida mobiliária?
Haddad - Sim, e a garantia ficou muito mais frágil. Em julho de 94 a dívida interna era de uns US$ 60 bilhões para reservas de US$ 40 bilhões, uma relação de um e meio para um. Hoje, a relação é mais ou menos US$ 170 bilhões de dívida mobiliária para US$ 58 bilhões de reservas, ou seja, uma relação de três para um. Em dois anos, a relação piorou 100%. As reservas, que eram dois terços da dívida interna, passaram a ser um terço.
Como a taxa paga pela dívida é maior do que a obtida com as reservas, como o governo continua com déficit e como estão sendo criados novos programas de reescalonamento de dívidas, Proer etc., vai aumentar ainda mais esta relação nos próximos meses.
Folha - O Real ficou mais frágil?
Haddad - O Real ainda não está consolidado e é preciso que se tomem medidas para que essa relação pare de piorar. Só se consegue ajustando o setor público. Não adianta comparar com outros países. Os Estados Unidos, por exemplo, não têm nenhum problema em vender US$ 100 bilhões de papéis do Tesouro, por 30 anos, se eles quiserem.
Ao passo que nós, aqui, temos uma história recente de calotes, congelamentos, confiscos. Não podemos nos dar ao luxo de ficar dependentes de um endividamento crescente para consolidar um plano de estabilização.
Folha - O presidente e o ministro da Fazenda têm argumentado, com frequência, que o ajuste tem sido feito num ritmo adequado a um sistema democrático. O senhor concorda?
Haddad - Eu tenho muito respeito pelo que está sendo feito em nível de governo. Mas sempre acho que se pode fazer melhor. Algumas coisas estão andando muito devagar.
Folha - Por exemplo?
Haddad - Perdeu-se muito tempo com a privatização, embora agora esteja sendo acelerada. O ajuste do governo em si, embora haja muitas restrições, não é possível que não se possa fazer melhor. O governo tem 2 milhões de imóveis. Não admito que um terço não poderia ser vendido ao preço de uma Vale do Rio Doce, sem nenhuma reforma constitucional. Ou reduzir o número de autarquias. Pequenas coisas cujo somatório daria uma coisa gigantesca.
Folha - O governo se concentrou demais nas reformas e deixou de fazer outras coisas?
Haddad - Sim.
Folha - O Garantia é muito importante em operações externas. Essas fragilidades do Real têm afetado o humor dos investidores?
Haddad - Em geral, o investidor externo ainda está confiante no Brasil. Desanimou com o andamento das reformas, mas já tivemos mais de 50% de aumento na Bolsa de Valores neste ano, a melhor performance no mundo. Tem sido uma das pontas para manutenção do Real.
Para que as expectativas sejam mantidas, é preciso que as promessas sejam cumpridas e as coisas aconteçam.
Folha - Quanto tempo o Real tem para se ajustar antes de uma crise?
Haddad - Ninguém pode responder, é impossível saber. Se, por um lado, concordo que não precisa fazer amanhã senão vai estourar semana que vem, por outro lado não é "vamos esquecer, porque temos tempo suficiente".
Financeiramente, as contas se deterioraram muito e o mercado vai ficando gradativamente mais incomodado com o fato de que o governo está tendo cobertura cada vez menor para sua dívida interna girada a curto prazo. O governo tem que ter uma sensação de urgência para uma solução. Não somos um país que acha que tudo ficará bem se tivermos um déficit de 5% ou 7% do PIB.
Folha - A aprovação do direito da reeleição poderia ajudar a ganhar mais tempo?
Haddad - Reeleição é importante. Eu sou a favor de reeleição, porque quatro anos é pouco tempo. Mais importante que a reeleição, contudo, é ter continuidade no processo de ajustamento. A expectativa do mercado hoje é que a reeleição vai ocorrer.
Folha - O desejo da reeleição pode ter inibido um maior ajuste fiscal?
Haddad - Pressões políticas existem. Espero que a reeleição não seja conseguida a esse custo, porque aí de pouco adiantaria. O plano estaria em alto risco, com ou sem reeleição. Precisamos lembrar o que aconteceu com o quinto ano de mandato para o presidente Sarney: o custo acabou sendo alto para o país.

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