São Paulo, domingo, 29 de setembro de 1996
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Progresso e pessimismo

Biologista moderno adaptou seu raciocínio a um reducionismo

ROGÉRIO MENEGHINI
ESPECIAL PARA A FOLHA

No início do nosso século era comum imaginar-se que as grandes descobertas já haviam sido feitas.
Esta sensação era mormente impulsionada pelo deslumbramento dos físicos, os quais tinham descoberto o campo eletromagnético e as partículas subatômicas.
Mas os princípios gerais da natureza química da matéria, provida pela associação de diferentes átomos, e a teoria da evolução eram contribuições que faziam aumentar esta sensação.
Perguntava-se o que mais importante restava para se descobrir. Bem, ninguém ousaria então pensar que tempo e espaço são grandezas relativas e não absolutas, como propunha a teoria newtoniana.
O que se revelou no século 20 foi tão fantástico (teoria da relatividade, teoria quântica, biologia molecular do gene) que faria os cientistas que propunham o fim da ciência na virada do século corarem de vergonha.
Cresce de novo a sensação de que os grandes paradigmas já foram descobertos, e nada resta senão uma "ciência normal", um aprimoramento do que já foi resolvido, e nada mais de revolucionário deverá acontecer.
Estas ondas de visão conservadora da ciência ocorrem aparentemente após ciclos de inserção de novos paradigmas.
A biologia molecular do gene, estando prestes a definir todo o genoma humano, fecha um desses ciclos, o qual provavelmente se iniciou neste século com Einstein.
Fatores sociológicos tendem a cooperar no sentido desta sensação pessimista.
Há hoje nos Estados Unidos uma percepção pública de que se investe muito dinheiro em pesquisa para poucos resultados.
Poucos resultados para os políticos e para o público não têm a ver com paradigmas, mas sim com a solução definitiva da cura do câncer e da Aids, por exemplo.
É difícil deixar de imaginar a possibilidade de novos paradigmas surgindo num futuro não tão distante (o que dizer então do imprevisível, inesperado).
Não seria possível, por exemplo, uma grande teoria da consciência? Muitos têm pensado e pesquisado nesta área.
Fazem até uma analogia com o nosso entendimento dos buracos negros.
Se a teoria da relatividade de Einstein é válida em toda a sua extensão, então os buracos negros apresentam alguma coisa no seu cerne onde as leis da física não mais se aplicam. Mas ainda não temos uma teoria para explicar estas singularidades.
Na área biológica, a própria biologia molecular não esgotou as possibilidades de saltos empolgantes de conhecimento.
Porém não se espera que para isso seja necessária alguma nova teoria revolucionária.
Uma questão crucial nos separa ainda da possibilidade de se criar vida.
Esta seria, na sua forma mais simples, uma célula capaz de se reproduzir a partir de todos os ingredientes químicos básicos, os quais em pouco tempo serão virtualmente passíveis de serem sintetizados, todos eles, em laboratório.
É certamente impossível agregá-los e daí surgir uma célula. Muito embora vários componentes celulares se agrupem e adquiram estruturas tridimensionais funcionais de forma espontânea (como um sal formando cristais em solução), há certamente outros condicionantes, pois muitos complexos celulares alcançam estruturas funcionais fora de seus níveis de energia mínima.
É como se a célula tivesse uma memória histórica. Em outras palavras, nem toda a informação para a constituição de uma célula viva está armazenada no DNA, mas apenas uma fração cujo valor não conhecemos.
Conhecemos bem como o DNA transmite a informação para a síntese de proteínas e que função, em última análise, estas podem exercer. Porém o nosso conhecimento vai se esgotando por aí.
Sabemos pouco sobre o fenômeno de dobramento de uma proteína para aquisição de uma estrutura tridimensional funcional e, assim, não podemos prever com precisão qual seria essa estrutura a partir da sequência dos aminoácidos.
Há condicionantes cinéticos envolvidos, tais como a ordem com que os aminoácidos componentes da proteína são adicionados?
Até que ponto e de que forma uma complexa estrutura pré-montada de uma célula mãe (membrana, mitocôndria, citoesqueleto etc) passa informação para a elaboração das mesmas estruturas nas células filhas?
Haveria algum novo conhecimento fundamental aqui envolvido ou uma complexa montagem de um esquema pela somatória de acréscimos de conhecimentos? Não tenho dúvida de que seria pela segunda alternativa.
Em última análise, o biologista moderno adaptou o seu raciocínio a um total reducionismo e admite que complexas estruturas funcionais são produto de interações específicas de moléculas menores, por meio de forças relativamente bem conhecidas pelos químicos.
Não há razão para se pensar o contrário. Assim, a "montagem" de uma célula artificial diferiria da montagem de um vírus artificial (o que já foi feito) pelo grau de complexidade e de conhecimentos ainda a serem adquiridos.
Esses conhecimentos certamente serão de altíssima relevância e poderão mesmo levar a novos Nobel, mas não deverão gerar nenhum novo paradigma, no sentido de uma nova teoria revolucionária para cada ciência.
Se "sintetizar" uma célula pode ter um valor emblemático, no sentido de ser o corolário de um domínio virtualmente cabal dos conhecimentos de como uma célula viva funciona, pode-se fazer uma analogia com a montagem de um complexo quebra-cabeças tridimensional. Entre muitas soluções possíveis só uma é perfeita.
Para alcançá-la precisamos conhecer como as pedras se encaixam, mas será fundamental seguir uma ordem na construção sem o que não se chegará à solução final.
Esta ordem seria o equivalente à informação extra-DNA que uma célula tem guardada em suas estruturas complexas, e que não sabemos bem como é transmitida na constituição de uma célula filha.

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