São Paulo, domingo, 29 de setembro de 1996
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Cientistas sabe-tudo são sempre reacionários

RONALDO ROGÉRIO DE FREITAS MOURÃO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A idéia do fim da ciência, defendida por John Horgan, reflete o perigo de uma ciência dogmática. Depois de lutar contra todas as espécies de dogmas religiosos, políticos e filosóficos, parte da comunidade científica acabou dominada pela tendência, própria da mente humana, de transformar em dogma tudo aquilo que acredita constituir o supra-sumo do saber ou seja capaz de vencer os obstáculos de natureza religiosa.
Ao serem impostas, as ideologias em geral retardam o progresso das ciências até serem revistas ou rejeitadas. Mas desta ameaça -o dogmatismo- não escaparam os mais notáveis cientistas em todas as épocas: os médicos do século 18 levaram muito tempo para se livrar da teoria flogística; os biólogos do século 19 tiveram dificuldades para se desfazer da teoria da geração espontânea; e os mais notáveis físicos do século 20 foram contrários às proposições da relatividade einsteiniana. O grande Ernest Mach escreveu que não iria aderir à idéia do átomo e "outras teorias do mesmo gênero".
Muitas das idéias aceitas na atualidade como definitivas serão, sem dúvida, parcial ou totalmente substituídas por outras. Na ciência nada é absoluto. A própria verdade é relativa.
A incapacidade de aceitar a idéia da imprevisibilidade científica -inegavelmente perturbadora, com a sua evolução incontrolável e a permanente revisão dos seus paradigmas- cria um espírito de reação às inovações e ao revisionismo, mesmo entre os cientistas mais cultos.
A incapacidade eterna de admitir idéias novas pode conduzir o leigo a uma séria dúvida sobre o valor da ciência. Pode levar os mais sábios, os grandes cientistas, os pesquisadores mais competentes, à indiferença, ao sarcasmo, e mesmo às reações que vão da admiração à tolice.
Como todos os dias uma nova notícia altera a anterior, é comum escutar do povo que os cientistas nada sabem, como se eles (os cientistas) tivessem esta pretensão; mal sabem que a maioria dos verdadeiros homens de ciência se consideram eternos estudantes à procura de uma solução para os enigmas que nos cercam. Mas nem todos são modestos no seu modo de agir; alguns são prepotentes.
Não faz muitos anos, em plena metade do século 20, em um dos países mais liberais do mundo e na comunidade que por princípio deveria ser a mais aberta do mundo, a dos cientistas, assistiu-se à ação e aos efeitos do dogmatismo científico. Para exemplificar tal perigo, citaremos dois célebres casos: a descoberta dos genes "saltadores", identificados por uma pesquisadora norte-americana sem grandes títulos e sem grandes recursos -Bárbara McClintock- e a hipótese da secreção de hormônios pelo próprio cérebro -teoria do inglês Geoffrey Harris, no início dos anos 50.
A idéia de McClintock, de que os genes não se exprimem nas descendências de uma maneira rigorosamente determinada, para não dizer determinista, irritou furiosamente os geneticistas norte-americanos dos anos 30 e 40.
A teoria se firmou graças à teimosia excepcional de McClintock, mulher modesta, com ar de uma doçura persistente, que, durante 40 anos, prosseguiu nas suas pesquisas apesar do escárnio dos seus colegas mais famosos. Só no início dos anos 80, quando muitos dos seus adversários já eram mortos, Bárbara viu seu trabalho reconhecido. Em 83, ganhou o Prêmio Nobel de Medicina.
O mesmo ocorreu com a descoberta dos hormônios cerebrais -as endorfinas- pelo norte-americano Hughes e pelo francês Guillermin, em 1975, cuja idéia era rejeitada violentamente pelo maior especialista britânico em hormônios: Solly Zuckermann.
Dois grandes pesquisadores independentes, Guilhermin e o seu colega polonês Andrew Schally, lutaram obstinadamente contra as idéias predominantes, conseguindo separar outros hormônios cerebrais previstos por Harris. Em 1978, os dois ganharam o Prêmio Nobel de Medicina. Convém assinalar que Guillermin teve um artigo -sobre a descoberta dos hormônios- recusado pela respeitável revista "Science" sob a alegação de que era fruto de sua imaginação desenfreada. Toda idéia, toda hipótese, toda descoberta reflete uma parte da realidade: é impossível anunciar uma descoberta em termos definitivos. Daí o perigo do dogmatismo científico.
Ao descobrir as leis da gravitação universal, Newton não podia saber que dois séculos mais tarde seriam descobertos objetos celestes cuja dinâmica é incompatível com suas idéias. Assim também ocorreu em 1937: o russo Dubinin, ao descobrir a mutação natural, jamais imaginou que esse fenômeno fosse muito mais complexo do que supusera. De fato, a descoberta posterior dos segmentos do DNA, os introns, pelo norte-americano Spencer, deixou evidente que a concepção tradicional, que considerava a mutação como um fenômeno de exceção, não era verdadeira. As mutações ocorrem permanentemente, até mesmo nos animais superiores.
Com o advento da conquista espacial, o cenário da astronomia atual encontra-se em permanente alteração. Principalmente depois que as sondas espaciais e os observatórios orbitais, além de detectarem novos objetos celestes, come çaram a difundir resultados contrários aos paradigmas preestabelecidos no campo da cosmologia e da evolução estelar, como, por exemplo, a descoberta de que algumas estrelas seriam mais velhas do que o próprio Universo, enigma que se opõe ao atual panorama da história do cosmo e, em particular, à teoria do "Big-Bang", hipótese mais aceita para explicar a origem do Universo.
Estes relatos têm por objetivo mostrar que uma hipótese ou uma descoberta não são jamais uma aquisição total do saber, mas sempre um fragmento do saber que impõe uma reorganização do saber anterior, com alteração do próprio paradigma anterior que permitiu que a ciência o compreendesse e aceitasse.
Só a repetição sucessiva faz com que uma lei seja considerada uma descoberta, e só a análise sistemática pode permitir classificar um objeto como uma descoberta. A história da ciência é uma sucessão de paradigmas. O primeiro paradigma surgiu com a revolução copernicana, que permitia ao homem libertar-se do geocentrismo em que vivia. O homem deixou de ser o centro do Universo. O segundo foi a revolução cartesiana, que tornou o cosmo acessível à razão. A capacidade de análise e de lógica fez com que o homem assumisse o domínio da ciência e da técnica e se transformasse no arquiteto de idéias do mundo no futuro. O terceiro foi a revolução darwiniana, que reconduziu o homem à natureza e libertou-o do antropocentrismo. O quarto é a revolução sistêmica, que está permitindo reintegrar os conhecimentos como um todo coerente.
Ela reconduziu o homem à sua posição e ao seu papel no Universo. Se ainda estamos vivendo este paradigma, como então imaginar o fim da ciência? O quinto paradigma -a revolução simbionômica- está surgindo: trata-se de uma síntese analítica e sistêmica das ciências da complexidade e da teoria do caos.
As ciências da complexidade devem desembocar numa visão unificada da natureza. A evolução simbionômica -teoria geral da auto-organização e da dinâmica dos sistemas complexos- permitirá traçar vias possíveis de evolução das sociedades humanas em direção ao nascimento do cibionte e do homem simbiótico.
As evoluções analítica, sistêmica e caótica se fundirão em uma interpretação racional e sensível do mundo. Novas indústrias irão surgir, tais como as bioindústrias e as ecoindústrias, no contexto da indústria de informação. Disciplinas irão surgir: biótica, neobiologia, macrobiologia, ciências das redes, ciências cognitivas e bioinformática. Estes serão os instrumentos metodológicos e técnicos da revolução do terceiro milênio.
Diante deste novo panorama que irá surgir com o homem simbiótico, falar em fim de ciência parece-me uma visão equivocada dos que estão dominados pela idéia de que vivemos "no melhor dos mundos", onde a ciência já teria atingido o seu limite máximo de perfeição: uma visão antropomórfica, antropocêntrica e dogmática que devemos condenar, pois ela poderá nos conduzir a uma segunda "idade das trevas".

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