São Paulo, domingo, 29 de setembro de 1996
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Física precisa de experiências

HENRIQUE FLEMMING
ESPECIAL PARA A FOLHA

A física das partículas elementares procura as leis fundamentais da natureza, as últimas, as "verdadeiras", e acredita que elas sejam poucas e simples.
No estágio em que se encontra, produziu um quadro do Universo razoavelmente bem-sucedido. Tudo o que existe no Universo é descrito em termos de um pequeno número de partículas, entre as quais os quarks, os elétrons e os neutrinos. O comportamento dessa fauna é descrito por interações bastante simples, chamadas "teorias de calibre (gauge)".
Há um pouco de exagero nisso: não há ainda uma teoria quântica para grávitons, embora haja uma candidata muito sedutora, a teoria das supercordas. Costuma-se dizer que está quase tudo pronto.
Há alguns anos, Stephen Hawking escreveu um panfleto intitulado "O fim da física teórica está à vista?", onde propunha idéias semelhantes às de Horgan. Foi muito criticado. Deixem-me acrescentar algumas críticas. Tomemos o elétron, que conhecemos desde o início do século. Sabemos o valor de sua massa (quanto pesa), e o valor de sua carga elétrica. Mas não temos a menor idéia de por que sua massa tem esse valor e não outro.
O mesmo para a carga. Os elétrons são todos iguais: não temos a menor idéia de como a natureza realiza esse "controle de qualidade" para que não apareçam elétrons defeituosos.
E esses problemas existem para cada uma das partículas. O Universo é neutro, ou seja, a carga total positiva é exatamente compensada pela carga total negativa. Por qual motivo? Também não sabemos. Na realidade, a quantidade de coisas que sabemos é ínfima diante do que não sabemos. Continuamos como Isaac Newton, que disse, ao final de sua carreira luminosa, que se sentia como alguém numa praia, que tinha conseguido recolher, aqui e ali, algumas conchas, enquanto tinha, diante de si, o oceano desconhecido.
A física das partículas elementares não corre o menor perigo de morrer à míngua por falta de problemas. Corre, sim, o risco de morrer por falta de dinheiro. Dito de outra forma, por falta de suficiente interesse por parte dos financiadores, que são nações, no que ela possa produzir de novo.
A física é uma ciência. Por isso, precisa de experiências para testar suas teorias. Essas experiências se tornaram tão caras que já se duvida que possa haver retorno proporcional em termos de inovações tecnológicas.
Acredito, contudo, que esse seja um problema restrito à minha área de pesquisas, e talvez a algumas outras. Mas achar que a grande era das descobertas científicas acabou é subestimar um dos aspectos básicos da maneira pela qual a ciência básica progride. Em muitas áreas, na medicina, por exemplo, os problemas nos são impostos: há que descobrir a cura do câncer, da esclerose múltipla. Na ciência básica não é bem assim. Faz parte do talento do pesquisador localizar problemas que não sejam difíceis demais e ainda sejam relevantes. Pode-se, até certo ponto, selecionar os problemas.
Por isso estou firmemente convencido de que, quando uma ciência começa a perder o seu ímpeto, a inovar só em detalhes, o que se deve esperar não é o fim dela, mas sua substituição por uma ciência inteiramente diferente. "Nas épocas de crise nascem os filósofos", sintetizou Nietzsche.

Henrique Fleming é vice-diretor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo.

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