São Paulo, domingo, 29 de setembro de 1996
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Sociedade do cartaz repudia política

JACQUES RANCIÈRE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em junho de 1848, a crônica parisiense do "Illustrated London News" oferecia a seus leitores ingleses, no lugar das costumeiras colunas sociais da estação, o relato e as imagens dos combates de rua que contrapunham os trabalhadores insurrectos e o governo. Uma dessas imagens nos mostra uma imponente barricada no topo da qual desfila um grupo de insurrectos. Ao pé da barricada, uma pequena placa traz a menção "lotado".
Terá visto o autor da gravura, com seus próprios olhos, tal chapa indicando aos candidatos à insurreição que a barricada estava repleta e que eles deviam procurar lugar em outra parte? Quis ele divertir seu público com tais trabalhadores parisienses que se dirigiam às barricadas como quem vai ao espetáculo? Ou será que ele viu a insurreição pelas lentes da boêmia pitoresca que popularizava o teatro de então?
É difícil dizer, mas uma coisa é certa: fiel ou fantasista, neutra ou malevolente, sua imagem deixa entrever um vínculo essencial entre política e teatro. Ela nos indica que a própria insurreição está longe de ser a multidão esfaimada ou furiosa que inunda as ruas como uma torrente. Trata-se antes de uma maneira de ocupar a rua, de deturpar um espaço normalmente consagrado à circulação dos indivíduos e das mercadorias, para aí erigir uma cena e redistribuir os papéis. O espaço de circulação dos trabalhadores converte-se assim no espaço de manifestação de um personagem olvidado nos cálculos do governo: o povo, os trabalhadores ou qualquer outro personagem coletivo.
Esses insurrectos parisienses do Junho de 1848 gritavam: "O pão ou o chumbo". Tais fórmulas bem buriladas não é a fome que as inventa, mas o hábito do teatro e de sua linguagem emprestada. Alguns anos antes dessa insurreição, os cronistas literários da alta sociedade foram arrebatados por um flagelo inédito que grassava no mundo operário: o cultivo da literatura. O mal teria sido benigno se tal poesia se contentasse em cantar, com palavras singelas e ritmos ingênuos, os trabalhos, as penas e os sonhos operários. Mas não: os poetas operários escolhiam palavras grandiloquentes e ritmos nobres. Em vez de exprimir suas dores cotidianas, eles roubavam a dor alheia, a fictícia dor dos grandes heróis românticos vitimados pelo mal de viver.
Os cronistas avisados previam que as coisas acabariam mal. Apesar de tudo, eles tinham dificuldade em compreender o fundo das coisas: ao roubar desse modo as palavras e os sentimentos alheios, os trabalhadores não caíam no simples esquecimento de sua condição; eles inventavam sua política. A política, no sentido forte do termo, é a capacidade conferida a todos e a cada um de se ocupar dos assuntos comuns. Ela começa com a capacidade de trocar sua linguagem ordinária e suas pequenas dores para se apropriar da linguagem e das dores alheias. Ela começa com a ficção. A ficção não é o contrário da realidade, a fuga da imaginação que inventa um mundo de sonhos. A ficção é uma maneira de escavar a realidade, de acrescentar-lhe nomes e personagens, cenas e histórias que a multiplicam e lhe subtraem a evidência unívoca. Eis como o conjunto de indivíduos trabalhadores torna-se o povo ou os proletários; eis como o imbricamento de ruas torna-se a cidade ou o espaço público.
O que os cronistas inquietos ou o ilustrador irônico pressentiam confusamente, um filósofo já formulara em outra época com clareza. Platão denunciou a tragédia com tamanha virulência não somente porque os poetas seriam pessoas inúteis ou suas histórias seriam imorais, mas sim por ter percebido uma solidariedade essencial entre a ficção teatral e a política democrática. Não pode haver, diz ele, seres duplos na cidade, onde cada um deve cuidar exclusivamente de seus próprios assuntos: pensar, governar, combater, trabalhar o ferro ou o couro. E não são apenas os atores de teatro que são seres duplos. O trabalhador que interrompe o trabalho de sua ferramenta para dar-se ares de um personagem como "o povo" é também um ser duplo. O próprio povo é uma aparência de teatro, um ser feito de palavras, que vem em maioria impor sua cena de aparência e de discórdia no lugar da boa repartição das funções sociais.
Recordo-me sempre daquela barricada teatral quando ouço descrever nosso mundo como o da sociedade do espetáculo ou da "política-espetáculo". Tais noções, inventadas para denunciar a alienação da sociedade governada pela mercadoria, acabaram por exprimir pouco mais do que a sabedoria barata de espíritos desabusados, para quem o povo possui tudo o que deseja: prateleiras de supermercados, desfile de governantes, de suas esposas e seu séquito, consumo cotidiano de anúncios comerciais ou telenovelas. Mas sem dúvida o próprio equívoco da noção de espetáculo é responsável por tal retorno.
Ao redigir, 30 anos atrás, "A Sociedade do Espetáculo", Guy Debord inscrevia-se na tradição da análise marxista do fetichismo da mercadoria. Ele via tal fetichismo culminar no "espetáculo" -a perda total do ser no ter e do ter no simples parecer. Todavia, ao opor a passividade do espetáculo e a ilusão do parecer à realidade substancial do ser e do agir, tal denúncia permanecia ainda prisioneira da visão platônica. Não há como negar que o reino mundial da mercadoria é o da confusão total do real e da aparência, mas talvez devêssemos interpretá-lo às avessas: não é o real que se dissipa na aparência, mas a aparência que se acha repudiada. Entendo por aparência a realidade construída, a realidade suplementar que faz com que "a realidade" perca o caráter de ordem necessária das coisas e torne-se problemática, aberta à discussão, à escolha, ao conflito. Não vivemos numa sociedade do espetáculo, na qual a realidade se perde, mas antes numa sociedade do cartaz, na qual a aparência se vê recusada.
O cartaz não é o espetáculo. Ao contrário, é o que o torna inútil, o que dá por antecipação o conteúdo e suprime de um só golpe sua singularidade. Nossos governantes voltam-se aos publicitários para elaborar sua imagem de marca, mas renunciam ao âmago espetacular da política -a retórica pública. Os cartazes dos filmes nos contam de antemão os efeitos que tais filmes, em dosagens específicas de estímulos apropriados, produzirão sobre o público que se tem em mira. As "ficções" televisuais são antificções que nos apresentam personagens como nós, que evoluem em cenários semelhantes àqueles nos quais os vemos, e que expõem "problemas" análogos aos nossos, próximos àqueles que expõem, em outra hora, as testemunhas da "realidade".
O cartaz publicitário não nos retrata mais nenhuma fantasmagoria, mas a simples certeza de que tudo está disponível, contando que tenha preço -sobre o qual, aliás, podemos sempre "pechinchar" com os comerciantes. Algum tempo atrás, o turista a caminho de Foz do Iguaçu via-se acolhido por gigantescos retratos da Gioconda. "Mona Lisa os espera a 10 minutos daqui", dizia o cartaz. O "enigmático" sorriso da Mona Lisa, entretanto, não anunciava outro mistério fascinante senão o brilho refulgente de um supermercado paraguaio, onde a mercadoria é mais barata.
A sociedade do cartaz, que entrega a domicílio as imagens das guerras sangrentas e as das pequenas inquietações cotidianas, a ficção semelhante à realidade e a realidade semelhante à ficção, não faz mais que ilustrar o incansável discurso dos governantes, os quais proclamam haver extinto as sombras da política: agora não há mais que a realidade, as mercadorias, as pessoas que as produzem, as vendem e as consomem; não há mais que indivíduos e grupos bem recenseados, bem sondados e bem delimitados, de que a sabedoria dos governos encarrega-se de lançar à massa mundial de interesses. "Parem de fazer teatro. Não estamos mais no tempo do teatro" -essa é a mensagem do cartaz, congruente à mensagem do poder. O que se repudia com isso não são apenas as barricadas dos tempos heróicos; é também a política, essa prática que sempre foi irmã do teatro.

Tradução de José Marcos Macedo.

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