São Paulo, domingo, 29 de setembro de 1996
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Ensaísta recorda Vinicius de Moraes

FRANCISCO LUIZ DE ALMEIDA SALLES

Difícil falar de quem se foi íntimo. O testemunho total cerceia o depoimento, porque impede o comentário livre. O acúmulo de experiências em comum torna impossível a abordagem do patrimônio reunido na vida de relação.
Por onde começar, pelo primeiro encontro ou pelo último? Aquele, nos anos 30, precisamente em 1935 e 1936, quando eram lançados seus segundo e terceiro livros, "Forma e Exegese" e "Ariana, a Mulher"?
Este, um poema único, escrito numa noite no sítio de Octávio de Faria, em Itatiaia, líamos juntos e sofríamos com o seu panteísmo lírico, que me influenciou, nessa incorporação da natureza e da mulher, como obsessões da existência, num quadro sinfônico e transcendente: "Só onde cabia Deus cabia Ariana".
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Éramos um grupo paulista, debruçado sobre a literatura e a filosofia, ainda universitários. Abrigávamo-nos à sombra do tomismo e da filosofia cristã e líamos Garrigou-Lagrange, Sertilanges, Claudel, Mauriac, Bernanos, Etienne Gilson, concordando com a definição claudeliana de Rimbaud: "Um místico em estado selvagem".
Posteriormente, ainda na acústica do pensamento cristão, transferimos nossa linha de descendência filosófica da filiação parmenídica-aristotélica-albertino-tomista para a agostiniana-platoniana, e plotiniana, com raiz em Heráclito, que depois justificaria nosso encontro com o existencialismo, vindo de tantos rios, da grande nascente de Kirkegaard, que nos libertou da sistemática asfixiante de Hegel e teve seus afluentes consequentes em Heidegger, Unamuno, Ortega, Berdiaef, Gabriel Marcel, Jankelévitch e Sartre.
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No Rio de Janeiro, Octávio de Faria, inserido na mesma linha de preocupações nos dava dois manifestos básicos para nossa conduta, o "Maquiavel e o Brasil", em relação ao país, e o "Cristo e César", em relação ao binômio Estado e igreja.
Vinicius de Moraes, surge, para nós, ligado a Octávio, seu colega na Faculdade de Direito do Rio e integrante do Grupo Caju (Centro Acadêmico Jurídico Universitário), que reunia, além de Octávio e Vinicius, Santiago Dantas, Hélio Viana, Thiers Martins Moreira e muitos outros, um grupo que poderíamos considerar o núcleo decisivo de atualização da cultura brasileira.
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A identificação de Vinicius com o exercício poético foi tão poderosa, que ele, post-modernista, se impôs como personalidade singular, não-classificável na linha do passado romântico e parnasiano e na do modernismo.
Curioso é que, na sua primeira fase de expressão poética, que acompanhei de perto, concretizada no "Caminho para a Distância", em "Forma e Exegese" e "Ariana, a Mulher", parecia que rompia com o modernismo, este ainda adolescente de 15 anos.
A forma adotada, na matriz da ode claudeliana, aplicava-se a uma temática ao mesmo tempo essencialista e panteísta, a primeira decorrente da sua formação, e a segunda, da sua vocação.
As duas prevaleceram na nova definição, que era uma mutação na sua poética, e cujo marco foi um pequeno livro, com um nome simples, definidor da sua opção: "Novos Poemas". Realmente eram novos, mas o conteúdo anterior os alimentava, apenas a casca solene fora quebrada. Vinicius dava o passo decisivo para fazer da poesia um profundo meio de captação do lírico popular e da verdade da circunstância, transfigurada pela linguagem do verso encarnado na carne das coisas.
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Sua passagem pela poesia do Brasil foi angélica. Era belo, sedutor, tranquilo e sensível. Cercado por grandes poetas, Bandeira, Drummond, Murilo, Schmidt, Jorge de Lima, Cecilia, passava incólume e diferente, como o delfim amado.
Havia um poder de encantação na sua presença: suas falas pequenas e bruscas, mas principalmente seus silêncios, ricos de sugestões, nos deixavam felizes em sua companhia.
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Evoco nossos encontros em São Paulo, em casa de Tati, sua primeira mulher, no começo dos anos 40, na avenida Campos Elyseos, onde conheci com privilégio o "Rosário" ("E eu, que era um menino puro, não fui perder minha infância no mangue daquela carne...") e nos extenuávamos de emoção, ouvindo a "Sinfonia" de Cesar Franck.
Evoco nossos dois anos em Paris, entre 1963 e 1964. Telefonava-me todas as manhãs para nosso drinque no bar Belman, esquina de François 1er com Marbeuf. Foi um lindo tempo, porque sua graça, sua comunhão humana, eram infinitas.
Vi-o pela última vez na casa de Toquinho, na Peixoto Gomide. Mas estava recolhido ao quarto, deitado, vítima de uma nova crise. Olhei do corredor, o amigo perdido, o canto mudo, o olhar desviado do nosso encontro e da nossa identidade.

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