São Paulo, domingo, 29 de setembro de 1996
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Uma aula sobre Orson Welles

DA REDAÇÃO

Leia a seguir o trecho de uma aula do crítico Francisco Luiz de Almeida Salles sobre o cinema de Orson Welles (1915-1985), proferida possivelmente entre 1949-50 e inédita em livro.
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FRANCISCO LUIZ DE ALMEIDA SALLES
A obra de cinema de Orson Welles é ainda pequena em número de filmes: "Cidadão Kane", de 1941, "Soberba", de 1942, "O Estranho", de 1946, "A Dama de Shangai", do mesmo ano, e "Macbeth", de 1948, que veremos hoje. (...)
Não é, entretanto, pelo volume de sua obra que este norte-americano de Kenesha, no Wisconsin -que realizou seu primeiro filme aos 26 anos, foi ator teatral com 10 anos, ilustrou e editou Shakespeare, participou de companhias teatrais nos Estados Unidos e na Irlanda, revolucionou os programas de rádio no seu país, organizou uma companhia teatral, a Mercury, levando por este grupo o programa de rádio "Guerra dos Mundos", com o qual provocou pânico na população dos Estados Unidos, convencendo-a de que a Terra estava sendo invadida pelos marcianos, fez comícios políticos e montou um circo em Hollywood-, não é pelo conjunto de sua obra que ele se tornou, desde o primeiro filme, um dos nomes mais discutidos do cinema e é ora chamado de genial, ora de impostor.
A contribuição de Orson Welles é importante pelo que ela trouxe de original e novo à linguagem cinematográfica. Neste curso promovido pela reitoria e dedicado ao estudo da direção em cinema, este aspecto da obra de Orson Welles é que deve ser salientado.
Em que sentido Orson Welles modificou a estrutura da linguagem cinematográfica? Todos sabem que ele foi o grande explorador em cinema do "campo profundo", graças a um aperfeiçoamento técnico da "câmera" denominado "pan-focus", que permitia obter a nitidez, dentro de uma mesma tomada, em planos simultâneos. Sabe-se que ele renovou o "décor" e a iluminação, que aperfeiçoou a técnica do "corte", que inovou em matéria de ângulos de câmera. Tudo isso, porém, não constitui mero aperfeiçoamento técnico, nada tendo a ver com o essencial da sua contribuição, que é de ordem estética, que é modificadora da estética de expressão em cinema.
André Bazin, num artigo publicado em um número de "Cine Clube", nos fornece alguns elementos preciosos sobre o "apport" de Welles à renovação da linguagem de cinema.
A partir de Griffith e até Orson Welles, a narração em cinema se aplicava por meio da sucessão dos planos (tomada à distância, tomada média, primeiro plano etc.) a uma descrição clara e eficaz da ação. Aliás, psicologicamente, esta realidade que no cinema nos é mostrada sincopada em planos, nós a aceitamos como sendo contínua e homogênea. Se, depois de nos mostrarem um homem se aproximando de uma porta, surgir em primeiro plano a maçaneta da porta que ele vai manipular, para nosso espírito isso não é nada mais que uma concentração do nosso olhar sobre esse pormenor, como se a câmera precedesse simplesmente a um movimento possível e natural do nosso olhar.
Essa era a linguagem até Welles. Era descritiva e psicológica e tinha como elemento de expressão o corte, que nos levava alternadamente de um plano a outro. Não havia o "plano profundo". Para passarmos de um plano próximo para um plano distante era necessário o corte.
Essa linguagem já era estética, embora fundada em leis psicológicas. Era estética porque nessa passagem de plano a plano há todo um sistema de abstração implícito sob a aparência de limitar e cortar os acontecimentos segundo uma espécie de anatomia natural da ação.
A narração cinematográfica clássica subordinava integralmente a realidade ao sentido da ação narrada, transformando-a, por isso, à nossa revelia, em uma série de símbolos abstratos. Essa narração, pois, não deixava nenhuma liberdade ao espectador em relação aos acontecimentos que se sucediam na tela. Tal realidade que víamos tinha um único sentido e devia ser interpretada de um único modo em relação aos acontecimentos dados.
Na nossa experiência real com os objetos, quando estamos "engajados" numa ação qualquer, nossa atenção, polarizada pelo projeto de ação, procede a uma sorte de transfigurações virtuais dos objetos, e eles podem perder efetivamente para nós certos de seus aspectos, para tornarem-se um signo ou um instrumento. Mas como a ação está em curso, o objeto pode voltar a ser objeto, e modificar a ação projetada. Somos livres para querer agir desta ou daquela maneira.
Ora, a narração clássica em cinema suprimia totalmente essa espécie de liberdade recíproca de nós mesmos e do objeto. A lógica dos planos em relação à ação anestesiava nossa liberdade. Tínhamos que aceitar aquela ação em que éramos uma única interpretação dos acontecimentos que nos eram dados.
Por meio da descoberta do "campo profundo", Orson Welles modificou a narração clássica. E como? Simplesmente constrangendo o espectador a fazer uso de sua liberdade de atenção e obrigando-o, ao mesmo tempo, a sentir a ambivalência da realidade.
Lembro-me da première de "Cidadão Kane" aqui em São Paulo e a impressão à primeira vista intolerável que o público teve deste novo tipo de narração.
Welles nos propunha, por exemplo, uma tomada móvel, sem corte, e dentro dela a ação se processava. A nossa atenção, dentro de uma única "tomada", era solicitada por vários centros de interesse, e a câmera não vinha em nosso socorro nos trazendo o pormenor em primeiro plano, que nos assinala o que apreender da realidade. No momento em que estávamos olhando para um personagem, o outro fazia um jogo de fisionomia revelador, e isto poderia nos escapar.
Esta a narração técnica descoberta por Orson Welles, e que só foi possível com a criação do plano profundo. Mas não fica aí a sua criação. A essa narração técnica, Orson Welles pospôs uma narração dramática nova.
Ao contrário da narração analítica, que nos conta a ação didaticamente, impondo-nos uma única versão possível da história, Welles nunca extrai dos acontecimentos um sentido único. Diante do cidadão Kane podemos imaginar o que quisermos, o sentido dos fatos não nos é imposto, mas apresentado como são os fatos da realidade, isto é, cheios de uma multiplicidade de sentidos. E se a narração técnica de Welles era obviamente mais rica do que a clássica, a sua narração dramática o é ainda mais, porque mais realista, devolvendo-nos a realidade como ela é, na sua integridade ontológica, isto é, um complexo de possíveis em que nunca são determinadas as condições da nossa percepção.
O cinema com Welles, em consequência, afastou-se mais do teatro. Deixou de ser um espetáculo para ser uma narração, como na literatura, na qual as palavras é que nos sugerem os sentidos da ação. Aqui, as imagens nos surgem densas de sentidos possíveis.
Welles ainda não tinha empregado esse tipo de narração a peças teatrais levadas ao cinema. Fê-lo pela primeira vez em "Macbeth", que veremos hoje, e o resultado foi uma obra surpreendente, na qual, permanecendo fiel ao diálogo shakesperiano, Welles narra a ação com uma tal riqueza de sugestões, conseguindo fazer cinema, isto é, linguagem expressiva peculiar, mesmo se aplicando a uma ação principalmente teatral.

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