São Paulo, domingo, 29 de setembro de 1996
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Genocídio em Ruanda deixou legião de mulheres estupradas

The Independent
de Londres

DAVID ORR
EM KIGALI, RUANDA

Leonille Mukamangyera diz que há dias em que preferiria estar morta. Esta mãe de 35 anos faz parte do número desconhecido de mulheres estupradas durante o genocídio em Ruanda. O bebê que carrega no colo é uma lembrança perpétua das atrocidades que sofreu durante o genocídio, ocorrido dois anos atrás.
Os depoimentos de mulheres como ela indicam que o estupro foi praticado de forma generalizada durante o genocídio. A maioria das vítimas era de mulheres da etnia minoritária tutsi, e seus agressores, soldados ou milicianos da etnia majoritária hutu. Muitas mulheres foram mortas depois do estupro, mas muitas outras sobreviveram para contar os horrores do genocídio, que começou em abril de 1994 e durou três meses.
A casa de Leonille é um barraco de sapé, com teto de zinco, que pertencia a seu irmão. Ele foi morto nos primeiros dias do genocídio, ao lado do marido de Leonille, sua mãe, suas quatro irmãs e os filhos destas. Leonille divide o barraco com os quatro filhos e o bebê que nasceu no ano passado, em consequência de seu estupro.
"Meu marido foi assassinado dois dias depois do início do massacre", conta. "Fui a um quartel do Exército com meus filhos, mas fomos barrados. Um homem hutu nos convidou a ficar em sua casa, mas depois de alguns dias nos expulsou. Depois outro hutu nos abrigou em sua casa, junto com várias outras pessoas. Ele disse que teria de nos esconder individualmente e me levou para uma obra em construção."
Leonille pára, olhando para o chão. Parece estar perplexa diante da natureza dos acontecimentos que está narrando, mas prossegue.
"Naquela noite, um grupo de soldados foi à obra. Parece que sabiam que eu estaria ali. Um deles me disse: 'Vou te matar. Se você não quiser morrer, me mostre como são as mulheres tutsis'. Aí, ele me agarrou e me jogou no chão. Ele me estuprou e, quando terminou, dois outros se revezaram, fazendo a mesma coisa."
Leonille descobriu que estava grávida nas semanas seguintes à libertação do país. Chegou a pensar em fazer um aborto, mas acabou decidindo ter o filho.
A situação de outras mulheres como a de Leonille é descrita num relatório divulgado na última terça-feira pela entidade internacional de defesa dos direitos humanos Human Rights Watch. Intitulado "Vidas Destroçadas -a Violência Sexual Durante o Genocídio Ruandês e suas Consequências", o documento condena o regime cujos ódios e disputas causaram a morte de pelo menos meio milhão de pessoas e o sofrimento perpétuo de incontáveis sobreviventes.
Afirma que os estupros foram cometidos de maneira generalizada durante o genocídio e que milhares de mulheres foram estupradas individualmente, em grupo ou violadas com objetos tais como pedaços de pau afiados ou canos de armas de fogo, sexualmente escravizadas ou sexualmente mutiladas.
A propaganda política extremista que exortou os hutus a cometer o genocídio identificava especificamente a sexualidade das tutsis como um meio pelo qual a comunidade tutsi procurava infiltrar e controlar a comunidade hutu.
As vítimas de violências sexuais sofrem problemas de saúde constantes. Os mais comuns detectados pelos médicos que trataram dessas mulheres são as doenças sexualmente transmitidas, como a Aids.
Calcula-se que entre 2.000 e 5.000 crianças tenham nascido em consequência dos estupros. Algumas mulheres abandonaram seus filhos indesejados ou até cometeram infanticídio, enquanto outras sofreram complicações em consequência de abortos clandestinos.

Tradução de Clara Allain

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