São Paulo, segunda-feira, 6 de janeiro de 1997
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Feliz 97, dona Felícia

JAIME PINSKY

Dona Felícia, 50 anos assumidos, se orgulha de ser uma democrata histórica. No começo dos anos 60, ainda estudante de ciências sociais, não deixava de assinar nenhum manifesto progressista que aparecesse a favor de Patrice Lumumba, Fidel Castro, os mineiros bolivianos ou a liberdade da Irlanda. Como namorada do presidente do centro acadêmico, chegou a redigir alguns desses manifestos, cujos originais exibe com orgulho para a família nas datas festivas.
Quando começou o regime militar, teve de voltar para a cidade de seus pais, no interior, mas, em suas aulas, sempre que possível, explicava aos alunos a superioridade de Geraldo Vandré sobre Tom Jobim, subproduto da cultura americana em nossas plagas, como demonstrava José Ramos Tinhorão em seus brilhantes escritos.
Mais que isso evitava falar, pois o diretor do colégio era reacionário e poderia prejudicá-la; além do mais, seu pai, funcionário público de carreira, temia ser prejudicado pela rebeldia da jovem socióloga.
Mas dona Felícia não se dobrava. Sempre que podia, ia à missa naquela pequena igreja onde o padre lia provocativos trechos dos evangelhos a respeito de justiça social. Cheia de parábolas no coração, dona Felícia nem se incomodava com os olhares estranhos daqueles homens engravatados, com certeza agentes do Dops infiltrados, e marchava, heróica, com a sensação do dever cumprido.
Aceitou casar-se com o engenheiro que a cortejava havia muito tempo e vir para São Paulo, com a condição de não convidarem nunca para almoçar em casa aquele primo seguidor da TFP, a não ser em festas de família, e ficou alguns anos de molho tendo filhos.
Nesse período, sua atividade política resumia-se à leitura de "Pasquim", "Opinião" e alguns livros da Paz e Terra. Mas voltou com tudo na luta pelas Diretas, levando ao comício do Anhangabaú os pimpolhos mais velhos, para que eles "tivessem bom exemplo desde cedo".
Dona Felícia é consequente. Apoiou o fim da matança das focas e das baleias, tinha horror a Margaret Thatcher e paixão por Walesa na Polônia, além de uma indisfarçável queda por François Mitterrand, que depois traiu a causa, como todos sabem.
Hoje, fica feliz com o fim do racismo na África do Sul e cerra fileiras com os curdos, os palestinos, os índios mexicanos e os revoltosos de Timor Leste. Mente e coração abertos, defende os véus de mulheres árabes e a mutilação clitoriana de jovens negras; afinal, cada mulher está inserida em sua própria cultura.
Não encontra tempo para ler jornais, a não ser aos domingos, mas o rádio do seu carro está sempre ligado nas notícias, quer saber de tudo o que ocorre. Odeia quando os pedintes de faróis vêm interromper sua sede de participação e fecha os vidros para aquele povo.
O dinheiro anda curto para todos, ela sabe, por isso registra a empregada por metade do salário para que o desconto do INSS dela seja menor.
Sua única tristeza é o que aconteceu com suas três filhas: a primeira, a médica, casou-se com um treinador de goleiros, como se isso fosse profissão. Além do mais, é filho de libaneses e, embora tenha aceito casar na igreja, no fundo não passa de um muçulmano disfarçado. A segunda, arquiteta, arranjou um divorciado, produto de segunda mão e, ainda por cima, gordo.
O pior foi a terceira, a queridinha, o xodó, que fez ciências sociais, como a mãe, e trabalha numa ONG feminista: casou-se com um negro. Não que dona Felícia tenha qualquer restrição a negros, Deus me livre, não sou racista, mas, como ouviu sua vizinha comentar com uma amiga, "escolher um Pitta para prefeito, tudo bem, mas para genro, tenha a santa paciência"...
Dona Felícia é democrata, mas certas coisas ela não admite. Natal e Ano Novo têm de ser todo mundo junto, em casa, até os cretinos dos genros, se não tiver outro jeito. Pelo menos duas vezes por ano, as filhas têm de ficar por perto para serem "recicladas". Afinal, como sempre repete, a sociedade anda muito materialista, as pessoas estão muito "autocentradas" e um pouco de consciência social não faz mal para ninguém.

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