São Paulo, quinta-feira, 9 de janeiro de 1997
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A ilusão da escolha

ERMINIA MARICATO

As últimas eleições municipais consolidaram tendências conhecidas, o eleitor foi tratado como consumidor pelas várias correntes políticas, com raras exceções, e a mercadoria mais vendida foram imagens e cenários que ocultaram o verdadeiro caráter dos governos e dos investimentos públicos. A aparente vitória do marketing eleitoral esconde algo mais importante: o controle das informações.
Ninguém discorda que o crescimento urbano excludente tem correspondência com diversos males, como, por exemplo, a violência. O que, entretanto, parece longe de ser consenso é a necessidade de mudar radicalmente o padrão dos investimentos públicos nas cidades, cuja tradição tem sido a de contribuir com o crescimento da desigualdade.
Nossas cidades crescem produzindo em seu interior verdadeiras bombas socioecológicas, depósito de multidões abandonadas, sem quaisquer direitos legais. Na ausência do Estado, conceitos alternativos de justiça e novos valores são construídos.
A ausência do Estado é sentida principalmente pela ausência de leis e de direitos: a ocupação do solo é predominantemente ilegal (favelas, loteamentos ilegais), a resolução dos conflitos desconhece os tribunais, as relações de trabalho são predominantemente informais, a ação da polícia nem sempre segue as normas legais.
Justiça é algo que passa pela lei do mais forte em áreas como o Capão Redondo, em São Paulo, ou o Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro.
Enquanto a evasão escolar aumentava, a Prefeitura de São Paulo gastava em apenas três túneis situados no sudoeste da cidade quantia fantástica, superior a R$ 1 bilhão.
As obras viárias não diminuíram os congestionamentos de trânsito, que chegaram a bater recordes de mais de 140 km. A lógica da construção viária é mais imobiliária do que viária, como já demonstraram vários urbanistas.
Durante a campanha eleitoral, entretanto, ganha importância, como sempre, o apelo ao "social". Aí, sim, os ícones, repetidos à exaustão, cumprem papel simbólico, já que os fatos não resistem à menor análise do orçamento efetivamente realizado nos quatro anos. Ganha destaque a emergência de um novo tipo de populismo. As bandeiras que tradicionalmente foram da esquerda democrática estão mudando de mãos.
O caso mais impressionante de desprezo pelo social e pelo meio ambiente, na gestão de São Paulo, se deu por meio da parceria público-privada que promoveu operação de remoção de aproximadamente 40 mil pessoas -muito mais do que o Cingapura abrigou- das margens do córrego Água Espraiada.
Suas condições de moradia eram ruins e ficaram piores. Numa operação que lembra as reformas urbanas do começo do século, quando os pobres eram varridos das áreas centrais mais valorizadas, uma parte daquelas favelas foi removida para a área de proteção dos mananciais.
Algumas famílias saíram da área eleita como o novo centro da cidade global, cujo potencial de valorização é o mais alto de São Paulo, para palafitas situadas literalmente dentro da represa Billings, num dos bairros mais violentos da cidade, convivendo mais de perto com o lixo e o esgoto e agora ainda mais longe dos transportes e das oportunidades de emprego.
A norma legal, de proteção ambiental, foi violada por quem tinha a obrigação de fazê-la cumprir. Outra lei, a lei de mercado, se impôs. Tudo muito coerente com a tradição brasileira de privatização da esfera pública e arbitrariedade na aplicação da lei e dos direitos. Essa impressionante operação foi acompanhada do quase total silêncio da mídia.
Em cidades administradas para 30% da população, a manipulação da informação é indispensável: trata-se de fazer crer o que não é, vender o anti-social como social, vender a exceção como regra.
A tradição arcaica (discurso que contraria a prática) se combina à pós-modernidade (uso e abuso de montagens ficcionais). Os "marqueteiros" ganham muita importância nesse contexto, mas estão longe de toda a responsabilidade que lhes é atribuída.
As razões da ignorância social sobre a orientação das gestões e dos investimentos públicos são muitas e exigiriam mais espaço para seu desenvolvimento. Queremos adiantar apenas duas: a incrível fragilidade da oposição, que não se deu conta do novo papel das cidades no quadro da reestruturação produtiva, e a barreira midiática (especialmente rádio e TV), sem cuja democratização o Brasil jamais terá uma sociedade civil forte.

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