São Paulo, sexta-feira, 10 de janeiro de 1997
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Sistemas de exploração

LAURA DE MELLO E SOUZA

No decorrer da década de 1720, descobriram-se diamantes na região da serra do Espinhaço, no centro das Minas Gerais. A importância econômica das pedras seria responsável por um controle mais efetivo da Coroa sobre toda a área: o governo português cercou-a, chamando-a de Demarcação Diamantina, e determinou, inicialmente, que sua exploração se fizesse na forma de contratos arrendados por particulares. Foi o tempo dos contratadores, o mais célebre deles, João Fernandes de Oliveira, notabilizando-se tanto pela imensa fortuna amealhada quanto por ter sucumbido aos encantos de uma escrava negra, Chica da Silva. Em 1771 mudou o sistema de exploração dos diamantes, criando-se a Real Extração. Inaugurava-se a era dos intendentes: nomeados pela metrópole, autônomos ante o governo das Minas, deviam obedecer e comandar a Demarcação segundo um regimento próprio, que o povo chamou de Livro da Capa Verde por ser desta cor o exemplar, em marroquim, que existia na sede da Intendência, no Tijuco.
Tijuco, o mais destacado centro urbano daquela zona, entrou pelo século 19 como arraial, apesar do seu bom número de homens cultos, das bibliotecas de qualidade que possuía e do lindo casario, ainda hoje um dos mais belos acervos da arquitetura civil setecentista em nossa terra. Só em 1831, já no Império, conseguiria o estatuto de vila, chamando-se Diamantina e conservando o nome quando, sete anos depois, tornou-se cidade.
A tradição local fixou os tempos da Demarcação Diamantina como uma era de autoritarismo e iniquidade. Sobretudo os intendentes foram sempre invocados como déspotas à oriental, pondo e dispondo de tudo e de todos, alheios às leis e ao governo da capitania, do qual, aliás, seriam, conforme o Regimento, independentes. Boa parte das memórias, como a de Joaquim Felício dos Santos, ou mesmo da melhor historiografia, como é o caso de Caio Prado Jr., reproduziram a imagem de diamantes a engolirem os homens, impedindo qualquer outro tipo de produção e impondo um estado de miséria e anomia social (1).
"O Livro da Capa Verde", originalmente dissertação de mestrado, procura acertar contas com essas construções. Baseado em abundante documentação, a maior parte manuscrita, o trabalho avança muito no conhecimento do Distrito Diamantino e, sem dúvida, relativiza boa parte das generalizações abraçadas pela historiografia. Tal crítica, aliás, perpassa os quatro capítulos: "A Sociedade Diamantina", onde se indica diversificação econômica maior do que a tradicionalmente considerada; "O Livro da Capa Verde", que se debruça sobre o regimento e o contexto no qual veio à luz, quando ainda vigoravam as reformas de Pombal e a tentativa de abrir o aparelho administrativo às elites locais; "A Real Extração", capítulo esclarecedor quanto ao volume de empregos fornecidos por tal instância administrativa; "As Relações de Poder", onde é esmiuçada a atuação de alguns dos governadores de Minas dentro do Distrito.
Júnia Furtado é convincente em boa parte dos reparos feitos aos estudiosos de Minas e consegue mostrar que o regimento de 1771 não foi capaz de estrangular a vida cotidiana nem de isolar o Distrito do resto da capitania, ilustrando a distância que vai entre a letra escrita e a prática social. Os governadores continuaram se intrometendo na política da Demarcação e jogando as cristas com as autoridades locais. Estas, por sua vez, mostraram-se muitas vezes corruptas e lenientes, fazendo vistas grossas para o extravio de diamantes e para as alianças espúrias com a mineração clandestina. A justiça manteve-se restritiva e excludente, penalizando escravos e desclassificados sociais.
A parte do trabalho referente às relações entre os potentados locais e a máquina burocrática metropolitana é talvez a mais bem-sucedida. Seguindo as pegadas de Maxwell (2), a autora nos mostra que tais poderosos usaram-na em benefício próprio e em sentido contrário ao desejado pelo ministério pombalino, então cioso de cooptações regionais. Conseguiram distender as amarras do regimento e manobrar os instrumentos coercitivos que a metrópole lhes punha nas mãos para, com eles, alvejar os mais pobres, perpetuando iniquidades. Valeram-se da boa posição junto ao poder para fazerem do contrabando um negócio sólido e disseminado pela capitania. Aqui, é ainda Maxwell quem a inspira, apesar de ir além ao examinar mais detidamente os mecanismos de tal estratégia, central no papel desempenhado pelo Distrito Diamantino no processo da Inconfidência. Dói muito, mas tudo indica que Cláudio Manuel da Costa, além de Gonzaga e, sem sombra de dúvida, o Padre Rolim estiveram envolvidos no comércio ilegal de diamantes -atividade que, uma vez sufocada pelos novos governadores a partir de 1784, contou bastante na sua adesão às idéias libertárias.
A argumentação quanto aos arranjos cotidianos dos menos favorecidos é mais frágil. Está indicado que eram variadas as suas atividades, fugindo da monocordia mineratória, mas faltam evidências documentais e há uma falha bibliográfica considerável: não se usa nem se cita o trabalho de Luciano Figueiredo, "O Avesso da Memória", fundamental para o estudo do comércio ambulante em geral e feminino em particular (3). Os quadros estatísticos, da maneira como estão, não acrescentam muito ao entendimento da situação social do Distrito, mesmo porque os dados, bastante esparsos, não se prestam a um tratamento quantitativo.
Ressalvas à parte, o balanço final é altamente positivo, e o livro veio para ficar. A editora Annablume merece todo o louvor por editar trabalhos que, apesar do ótimo nível, têm autores pouco conhecidos. Seus livrinhos são simples e bonitos, mas cabe caprichar mais na revisão. Há um sem número de erros de pronome, crase, nomes da mesma pessoa que aparecem de forma diferente, datas truncadas. Um único exemplo: a introdução de Maria Odila Leite da Silva Dias alude o tempo todo ao "famoso regimento de 1772" ou ao fato de o livro estudar "o período que vai de 1772 a 1808" quando, já presente no título, a data inicial é 1771, a mesma, aliás, da edição do regimento, o famoso "Livro da Capa Verde".

Notas:
1. Joaquim Felício dos Santos, "Memórias do Distrito Diamantino" (1868), 3ª ed. , Rio de Janeiro, Edições O Cruzeiro, 1956; Caio Prado Jr., "Formação do Brasil Contemporâneo" (1942), 13ª ed., São Paulo, Brasiliense, 1973.
2. "A Devassa da Devassa - A Inconfidência Mineira: Brasil e Portugal - 1750-1808", Rio de janeiro, Paz e Terra, 1977.
3. "O Avesso da Memória - Cotidiano e Trabalho da Mulher em Minas Gerais do Século 18", Rio de Janeiro/ Brasília, José Olympio Editora/Edunb, 1993.

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