São Paulo, sexta-feira, 10 de janeiro de 1997
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As orcas e a reeleição

JOSÉ SARNEY

Brasília não tem mar e, não tendo mar, não tem baleia. Quando a capital foi transferida, a maior parte das pessoas que ali aportaram veio do Rio, e nada mais afetava os novos brasilienses do que a nostalgia das praias.
Houve estudos sobre a incidência de distúrbios psicológicos, de neuroses, e todos eles batiam na falta que faz o mar para quem viveu anos a fio na beira do mar e de repente tem de enfrentar a secura dos ares do Planalto Central, de plantas retorcidas e flores agrestes.
Oscar Niemeyer e Lúcio Costa bem que tentaram suprir essa ausência e criaram um lago que Gustavo Corção dizia jamais encher.
Encheu, e em torno dele instalaram-se muitos clubes e iates clubes, onde as mulheres ficam deitadas na relva, bronzeadas ao sol, biquínis desafiadores, veleiros, jet skis e petecas.
Mas falta o essencial: o clima que não é clima -a atmosfera da cultura da praia.
Por isso em Brasília soa como uma canção de ausência e saudade a notícia de que as baleias orcas (Orcinus orca) estão de volta e fazem a festa de Ipanema, dançam, revoluteiam e nadam volumosas e belas pelas águas azuis ou verdes do Rio e do Ártico à Antártida, e ninguém sabe por que aparecem na costa brasileira.
O presidente abre a janela do Palácio da Alvorada e pode ver tudo, mas não as orcas.
Juscelino dizia que quando alguém passa pela porta do gabinete presidencial, é um problema que entra. As soluções ficam lá fora: só chegam as coisas que não foram resolvidas.
Em Brasília, em janeiro, não chega nada, a não ser as chuvas esporádicas que começaram em setembro e vão definhando até chegar o tempo da falta de umidade, quando os gatos morrem e as narinas sangram.
Neste janeiro, chegou a convocação extraordinária do Congresso, assunto rotineiro que quase se transforma em questão constitucional e gramatical.
É que a Constituição diz que o Legislativo pode ser convocado pelo presidente ou pela maioria dos parlamentares. Esse "ou" -disseram os juristas que era "excludente", sem lembrarem que essa conjunção é, também, alternativa.
Encontro um jornalista político nos corredores do Congresso. Ele me pergunta: "E as novidades?"
Respondo-lhe: "As baleias orcas voltaram às praias do Rio e os cariocas estão felizes neste janeiro que chegou".
"Só isso?" "Não, o balão que ia atravessar o mundo só voou 150 quilômetros e caiu no deserto". "Mas a reeleição?"
Aí me deu o gosto de fazer imagens: o presidente está olhando-a nadar no Congresso. Sobe e desce, com a dúvida se vai para a salvadora navegação do alto-mar ou se encalha na praia.
Estes dias o presidente Fernando Henrique não está preocupado com nada, somente com o bailar dessas baleias que chegaram a Brasília, neste janeiro.
O leitor já deve ter visto que em Brasília não há assunto, ou melhor, só há um único assunto.

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