São Paulo, sexta-feira, 10 de janeiro de 1997
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A esquerda e o consumo

RENATO JANINE RIBEIRO

Um dos maiores desafios atuais para a renovação da esquerda está no papel que deve ser dado ao consumo. Parte razoável da esquerda resiste a questões desse tipo, porque desconfia da sociedade de consumo, de seu materialismo e, sobretudo, de seu consumismo, e também porque acusa, com razão, a direita de reduzir o cidadão a simples consumidor.
Isso se deve a uma das grandes qualidades da esquerda: ela valoriza a vida pública, ou a coisa pública, e por isso não aceita a aposta prioritária na esfera privada. Toda república digna desse nome tem por figura-chave o cidadão. Ora, se ele é reduzido a consumidor, os seus direitos políticos se reduzem a direitos econômicos, de ordem privada -e isso é muito pouco.
Mas essa postura da esquerda, embora parta de um princípio correto, que é o primado do público, incorre num sério equívoco. Análogo, aliás, a outro erro esquerdista: a aversão ao tema do contribuinte, do "tax payer", que a seus olhos é outro modo de dissolver a cidadania no dinheiro.
O equívoco da esquerda, ao acusar de direitistas aqueles que apostam no contribuinte e no consumidor, está em imaginar um cidadão quase sem corpo, que nem sustenta o Estado nem compra mercadorias.
Se queremos ter uma cidadania densa, progressista, de esquerda, devemos lembrar que esse mesmo cidadão paga impostos e compra bens dos mais variados. É essencial ter uma proposta para o imposto; aqui, porém, vamos nos limitar a debater o consumo.
Numa sociedade como a nossa, a satisfação dos desejos passa pelo consumo de massas. O erro do comunismo, aliás, foi apostar na austeridade e querer reconstituir Esparta e Roma numa era em que o acesso aos bens mais perecíveis se tornava crucial. Mas esse erro do marxismo-leninismo não implica que a esquerda democrática deva manter sua aversão ao consumo.
Tanto não implica que um dos movimentos políticos mais notáveis na sociedade norte-americana, nos últimos anos, foi o de Ralph Nader, culminando, aliás, na recente candidatura à presidência dos Estados Unidos, pela esquerda, desse defensor dos direitos do consumidor. Lutar por bens de consumo de melhor qualidade, seguros, a preço justo, tornou-se uma bandeira importante.
É compreensível que parte da esquerda relute em assumir essa causa. Afinal, a esquerda se nutriu na oposição radical ao capitalismo, e querer mercadorias melhores implica renunciar à revolução, resignando-se à reforma possível no interior da economia de mercado.
Mas é exatamente por aí que passa, talvez, a maior parte das experiências de vida de nosso tempo, e opor-se abstratamente ao mundo dos bens de consumo pode levar, tão-só, a perder as chances de uma ação política.
Mais que isso: há uma velha distinção -que os marxistas da austeridade devem ter retirado de Rousseau- entre o que é realmente necessário e as pseudonecessidades construídas pela imaginação ou pela ideologia. Ora, é exatamente essa distinção, com seu moralismo, que não dá mais conta da vida atual.
Para falarmos em "necessidades reais", precisaríamos acreditar numa natureza humana que seria sempre a mesma. Mas sabemos que o homem muda, no curso da história.
Além disso, em nossos tempos é plenamente válida a frase de Oscar Wilde: as coisas essenciais na vida são, justamente, as supérfluas. E isso, acrescentamos, porque são elas que dão aquele excedente que confere dignidade ao ser humano.
Ter casa, comida, roupa são direitos humanos elementares, mas, se ficarmos neles, esqueceremos que o homem não é apenas um ser que tem carências que devem ser preenchidas. Há também nossa imaginação, que desperta os desejos mais diversos. Estes nos diferenciam e fazem que sejamos mais do que um recipiente de necessidades mínimas.
É por isso que, paradoxalmente, o direito a um tênis bonito pode ser tão político quanto o direito a uma casa adequada. O direito à habitação ainda é um direito moral, a ver preenchido um elenco de necessidades iguais. O direito ao tênis já entra em outra faixa, a do direito ao excesso.
Ou aceitamos esse direito como um dos direitos humanos mais importantes -ligando-o ao direito ao prazer-, ou ficaremos no plano daquelas senhoras do século 19, que davam dinheiro aos pobres, mas exigiam que não fosse gasto em mulheres, fumo ou bebida. Pode ser, enfim, que esteja nos prazeres, nos desejos, e não nas necessidades o eixo de uma nova vida política.

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