São Paulo, domingo, 12 de janeiro de 1997
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Falsas analogias...

ROBERTO CAMPOS

"O parlamentarismo é o elixir paregórico para as crises da democracia"
Senador Mem de Sá

O debate sobre o tema da reeleição tem gerado mais calor que luz. E teve a desvantagem de paralisar a análise de reformas básicas, muito mais urgentes, como a administrativa, a previdenciária, a fiscal e a regulamentação do fim dos monopólios. O debate abunda, aliás, em falsas analogias. Uma delas é a citação da praxe de reeleição nos sistemas parlamentaristas. Lady Thatcher governou a Inglaterra por 11 anos, e o chanceler Kohl dirige a Alemanha há 14 anos. Permitir a continuação dos bons governantes e ensejar a substituição indolor dos incapazes é precisamente a maior das vantagens das democracias parlamentaristas.
Tivemos razoáveis experiências de parlamentarismo no Império e uma experiência malfadada com João Goulart, em 1961, que considerou o parlamentarismo um insulto pessoal e se dedicou "full time" à restauração presidencialista. Desgraçadamente, o parlamentarismo, que teria sido preferível ao atual casuísmo eleitoral, foi rejeitado no plebiscito de 1993, no qual se aliaram, em defesa do presidencialismo, personalidades tão díspares como Marco Maciel e Leonel Brizola.
Resta-nos, no regime presidencialista, o modelo norte-americano. As analogias políticas entre o Brasil e os Estados Unidos são tentadoras, por se tratarem de regimes federativos de porte continental. Mas há diferenças profundas. Os Estados Unidos se formaram a partir de Estados independentes e financeiramente viáveis, que se confederaram primeiro e depois se transformaram em federação, delegando ao poder central principalmente as funções de defesa, relações exteriores, administração monetária e regras de comércio. O Brasil, ao contrário, era uma monarquia de províncias governadas unitariamente. Nossos constituintes de 1891 copiaram em grande parte o sistema americano, mas essa construção era algo artificial, pois nascêramos como uma federação outorgada, e não uma federação consentida. A separação de poderes foi também incompleta. No sistema americano, o presidente nomeia o gabinete, com aprovação do Senado, mas os parlamentares dele não podem participar. A iniciativa de leis é do Congresso, e não do Executivo. Por costume, ainda que não por estatuto, o sistema permanece essencialmente bipartidário. Nossas diferenças em relação ao modelo americano se alargaram a partir da Constituição de 1988, que criou um sistema híbrido, meio parlamentarista, meio presidencialista, que Eliezer Batista descreveu pitorescamente, de certa feita, como "surubocracia anarco-sindical". Nele não há nem separação de poderes nem integração de poderes e sim mútua invasão de poderes (por meio do "mandado de injunção", o Judiciário, por exemplo, pode assumir funções legislativas). Há curiosidades no terreno laboral, pois que a filiação aos sindicatos é livre, mas compulsórios o imposto e a contribuição confederativa.
Há imitações equivocadas. Os nossos nacional-protecionistas inseriram no artigo 171, parágrafo 3º da Constituição, hoje revogado, uma preferência para as empresas brasileiras de capital nacional nas compras de bens e serviços pelo governo, imaginando estarem fazendo uma retaliação ao "Buy American Act". É um erro de tradução, de vez que a lei americana discrimina em favor do produto fabricado no país e não em função da origem do capital da empresa fabricante.
Nos Estados Unidos, como é sabido, não havia limitação formal à reeleição, mas a recusa de George Washington a um terceiro mandato firmou uma tradição, que só foi rompida com o terceiro e quarto mandatos de Franklin Roosevelt, na década dos 40, em condições de guerra. Emenda constitucional subsequente limitou a reeleição a um mandato, inexistindo a cláusula de desincompatibilização.
Será válido para o presidencialismo brasileiro imitar o exemplo americano de reeleição? A resposta é negativa, a não ser no contexto de reformas políticas mais amplas. É que o Poder Executivo no Brasil tem duas características manipulatórias inexistentes no modelo americano:
* A faculdade de baixar "medidas provisórias". Essas são muito piores e contêm intervencionismo mais grave que o dos decretos-leis da ditadura. Estes últimos estavam limitados a matérias financeiras, de segurança nacional e regime do funcionalismo. Só entrariam em vigor após aprovação do Congresso, ou por "decurso de prazo". As MPs criam fatos consumados e podem ser reeditadas indefinidamente. Admitir-se a tese da reeleição, sem limitação do arbítrio das MPs, é deixar um poderoso instrumento nas mãos dos incumbentes, habilitando-os a influenciar o desfecho eleitoral.
* O peso das estatais e de sua criação de cargos na vida política e econômica. Nos Estados Unidos, o presidente não tem capacidade de manipular empresas estatais para propósitos eleitorais, pois a economia é essencialmente privatizada. É desaconselhável no Brasil aprovar a tese da reeleição para os atuais mandatários que, em virtude do atraso das privatizações, continuarão com "alavancas de persuasão" por meio das benesses das estatais. Basta citar um exemplo.
A privatização das atuais empresas de telecomunicações foi adiada para 1998. Isso traz desvantagens para o Tesouro, pois, com o ingresso mandatório das estatais européias no mercado de privatização, haverá um excesso de oferta de ações do setor. E traz vantagem eleitoreira para o governo, pois as 27 subsidiárias da Telebrás representam cerca de 135 cargos diretivos, apetitosos como sedução política. Se a isso acrescentarmos o conjunto das estatais ainda não privatizadas, é enorme o potencial de manobra à disposição do governante candidato à reeleição, mesmo que persista a formalidade da desincompatibilização.
A conclusão é que o exame da tese da reeleição deve ser adiado até que se discipline o uso de MPs e avance o programa de privatizações. Ou, alternativamente, que a reeleição seja aprovada apenas para os futuros mandatários, com tempo para que se efetuem as reformas complementares. Imitar-se o modelo americano, sem o entorno institucional equivalente, é imprudente. Tanto mais quanto o ministro Sérgio Motta, no qual é difícil distinguir o lado sério do lado bufão, anunciou que o projeto político do PSDB é ficar 20 anos no poder...
Lembro-me de que, quando foi aprovada, em 1964, uma emenda constitucional que ampliava de um para três anos o mandato do presidente Castello Branco, habilitando-o a completar o mandato de João Goulart, levantou-se o governador Lacerda furiosamente contra a proposta, avançando o palpite de que os militares ficariam 20 anos no poder! Sabendo da ansiedade do presidente Castello Branco em transmitir o poder a um governante civil, declarei que o palpite de Lacerda era mais uma piada que uma profecia. No Brasil, piadas têm às vezes a esquisita mania de se tornarem profecias.

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