São Paulo, domingo, 12 de janeiro de 1997
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Adeus ao milagre. Salve o Brasil real!

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES

Por baixo dos festejos deste fim de ano na ilha da fantasia, o ano de 1996 terminou mal. São Pedro e a reeleição espúria atazanaram a vida dos desprotegidos e alimentaram a sanha das elites de poder. Mas o problema de fundo que promete acabar com o "milagre" maior da estabilidade econômica está nas contas externas, como sempre. O alerta vermelho veio com os dados do déficit comercial recorde e as previsões sombrias do Morgan (o banco orientador dos grandes credores internacionais) para o balanço de pagamentos.
No primeiro aniversário do Plano Real, na Comissão de Finanças e Tributação da Câmara dos Deputados, eu, o professor Pastore e o deputado Delfim Netto avisamos ao fleumático ministro da Fazenda que o plano era inconsistente e insustentável a médio prazo em termos de endividamento externo e interno. Nossas considerações foram tomadas como manifestações de uma 'oposição inconsequente', desejosa de perturbar o sucesso do plano. Novamente, em julho de 1996, fiz ponderações ao ministro, em audiência pública na referida comissão do Congresso, sobre as políticas monetárias e cambial da atual equipe econômica. Tentei mostrar-lhe, entre outras coisas, que estavam arrebentando com as finanças públicas, a exemplo de outras crises financeiras do passado deste país. Mas o ministro, apesar de crítico atuante e destemido do 'primeiro milagre' do começo da década de 70, desta vez parece estar disposto -talvez por lealdade ao presidente que pretende ver reeleito- a ignorar os fundamentos teóricos e as experiências passadas e recentes que tão bem conhece.
Cansada de repetir-me (ver, por exemplo, "Restrição Externa ao Crescimento" publicado nesta Folha em 25 de agosto de 1996), resolvo, neste começo de ano de 1997, citar textualmente um dos colunistas econômicos mais respeitados deste país. Refiro-me a Celso Pinto, em seu artigo 'Um alerta externo' (Folha, 7 de janeiro de 1997), com uma pequena correção em relação à ponte que ele e dezenas de economistas fazem entre déficit das contas externas e déficit fiscal. Diz ele: "Indiretamente, o excesso de gastos do governo seria financiado por um buraco externo crescente". Eu corrigiria a palavra "financiado" e colocaria "desfinanciado", já que é a conta de juros, com os quais se premia a entrada de capitais, que provoca o déficit fiscal. No resto, que são apenas os duros fatos, estou inteiramente de acordo e crescentemente preocupada, como todos os economistas de "bom senso".
Segundo o Morgan, as amortizações de empréstimos e bônus devem subir de US$ 13 bilhões em 96 para US$ 18,2 bilhões em 97 (a famosa conta de capitais). Dado que o país deverá desembolsar outros US$ 14,8 bilhões referentes aos juros da dívida externa, o "buraco" total, admitindo-se a projeção moderada de um déficit comercial de US$ 8,4 bilhões, chegaria a mais de US$ 41 bilhões neste ano, sem contar outros itens também deficitários das transações correntes, como as viagens e os fretes e seguros.
O Morgan, a exemplo do FMI, considera não só a entrada de investimentos novos, mas também reinvestimentos e empréstimos intercompanhias como uma boa maneira de financiar o déficit externo. Nessa conta ampla, os investimentos podem chegar a US$ 12 bilhões em 1997. Uma parte importante, como ocorreu nos últimos dois anos, provavelmente se orientará à aquisição de ativos preexistentes, sem impacto de significação na expansão da capacidade produtiva do país, mas com altos lucros patrimoniais para os especuladores e operadores das privatizações. Estas devem ser aceleradas para manter 'expectativas favoráveis', mas, uma vez torrado o patrimônio e transferido para o exterior o controle das grandes estatais, o buraco negro conduz inexoravelmente a uma crise cambial.
Como conclui Celso Pinto: "As reservas altas (US$ 60 bilhões) ajudam a garantir as contas externas, mas não resistiriam a uma séria crise de confiança. Além disso, a dívida de curto prazo, de US$ 44 bilhões, somada aos juros devidos no ano, praticamente equivale ao total das reservas. A conclusão é que o Brasil não poderá se dar ao luxo de deixar o déficit externo se deteriorar mais e, por isso, deverá frear a economia restringindo o crédito".
Não creio que restringir o crédito seja suficiente para "ajustar" as contas externas em desequilíbrio estrutural. Essa medida seria bastante, no entanto, para que o sonho de consumo com endividamento das classes C e D vá terminar na quarta-feira de cinzas, como no samba do Orfeu do Carnaval. O sonho das classes médias terminará mais precisamente em março, com o vencimento dos cheques pré-datados e o ingresso dos filhos nos colégios, esperando Godot: o reajuste salarial, o emprego dos mais velhos e dos mais jovens, um novo ensino público de qualidade, serviços públicos mais baratos e eficientes etc. etc.
Enquanto o Brasil real, o do sofrido povo brasileiro, tenta reagir, saudemos as coisas boas de 1997. Os novos prefeitos tomam posse e algumas dezenas deles conseguirão, de fato, que a população tome consciência da necessidade da cidadania verdadeira para uma existência mais digna. Barbosa Lima Sobrinho faz cem anos gloriosos de resistência e lucidez e inspira a luta nacional. Porto Alegre e Belo Horizonte continuam a sua caminhada democrática. Belém, a cidade cortada pelas águas e pela desigualdade, tenta ressurgir das muitas dores e poucas alegrias, celebrando hoje os seus 300 anos de história, com uma nova prefeitura democrática.
Fora do eixo de poder Rio-São Paulo-Brasília, onde pululam os "cosmopolitas", os lobistas e os procônsules do Império, os trabalhadores com ou sem terra, com ou sem emprego deste imenso país lutam por encontrar seu destino, por sair da "apagada e vil tristeza". Lutam para não ser condenados por esse novo pacto neocolonial, comandado internamente pelos partidos da ordem, que por demasia é difícil coordenar mesmo sob o controle de antigos "vice-reis".
1997 poderia ser um verdadeiro ano novo se o Congresso Nacional e um referendo ou plebiscito popular barrassem as pretensões continuístas do presidente da República. Quem sabe então, pressionado pelas circunstâncias, o atual governo teria dois anos para mudar o rumo de sua política econômica e ajudar, finalmente, a caminhada deste povo em direção à mudança social.
De qualquer modo, o Brasil real continuará lutando. Como bem lembrou mestre Furtado em entrevista recente, "o curioso é que revoluções se fazem em momentos em que o conservadorismo domina". Feliz ano novo!

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