São Paulo, domingo, 12 de janeiro de 1997
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Livro traz o 'essencial' de Gombrich

BLAKE MORRISON
DO "THE INDEPENDENT"

Não são muitos historiadores da arte cuja obra "essencial", só para abrir o apetite, chega a 600 páginas e ainda deixa o leitor preocupado com o que ficou de fora. Mas Sir Ernst Gombrich não é um historiador da arte qualquer, como prova "The Essencial Gombrich".
Uma vez o descreveram como mais de um e, ao mesmo tempo, menos de um, e ele considera essa descrição "mais ou menos certa". Gombrich não é um "connoisseur" preocupado com qualificações. Questões estéticas -"o que quero dizer quando afirmo que gosto deste quadro?"- não o interessam muito, ele diz. E escreveu poucas críticas da arte contemporânea. Ainda assim, é um grande estudioso, um pensador original e, graças a dois livros -"A História da Arte" (Ed. Guanabara Koogan) e "Arte e Ilusão" (Ed. Martins Fontes)-, um dos poucos historiadores da arte conhecidos do grande público. Não há ninguém como Ernst Gombrich.
Seria o caso de ele, aos 87 anos, estar baixando um pouco o ritmo. Mas seu intelecto não esmoreceu. Ele trabalha quase todos os dias. "Se não o fizesse, ficaria entediado", comenta. Em sua casa em Hampstead, no norte de Londres, usando uma jaqueta de tweed e tênis Reebok, Gombrich parece um homem entre dois mundos: a velha Viena de seus pais (Mahler, Bruckner e Hugo von Hofmannsthal faziam parte do círculo do casal) e a Londres de seus netos.
Gombrich veio para Londres há 60 anos, antes da anexação da Áustria pelos nazistas, para trabalhar no Warburg Institute, que, fundado em Hamburgo, também havia-se mudado para a Inglaterra para escapar das garras de Hitler. Tratava-se de um emprego que o colocava em um estimulante contato com outros intelectuais judeus refugiados. Mas Gombrich tinha também uma mulher e um filho pequeno para sustentar, e seu salário não era especialmente alto. Ele resolveu o problema depois da guerra, que passou monitorando transmissões radiofônicas alemãs, ao escrever "A História da Arte".
O nascimento da "História" é, em si mesmo, uma história famosa. Na casa dos 20, ainda em Viena, Gombrich havia escrito uma história do mundo dirigida a crianças. O projeto consumiu-lhe apenas algumas semanas -e provou-se um surpreendente sucesso. O editor então sugeriu dar continuidade a ele com um volume sobre a história da arte. Gombrich não conseguia divisar como escrever tal livro para o público infantil, mas, depois, imaginou-o possível, se voltado para leitores mais velhos, da adolescência para cima.
"A História da Arte" foi um sucesso comercial estrondoso, traduzido para 23 idiomas. Na academia, já saiu de moda. As reclamações que se fazem contra Gombrich são previsíveis: que ele não dá conta da importância da arte atual, que ignora, entre os pintores, as mulheres, que é eurocêntrico e elitista. No que toca à última acusação, ele não faz a mínima questão de se desculpar. "Não sou partidário do elitismo em política, mas não há quem não creia nele quando se trata de esportes, e não vejo por que não aceitá-lo também em arte. Nem todos podem fazer o que faz um gênio e nem todos conseguem produzir uma obra-prima, mesmo depois de acumular muita experiência."
Embora creia em valores -que a arte pode incorporar atributos como a fineza, a dignidade e a graça- e em juízo de valor -que Rembrandt é superior à arte tribal-, Gombrich está longe de ser arrogante ou austero. E, como demonstra "The Essential Gombrich", também é fascinado por diversas formas de arte popular e os cartoons certamente não o desagradam. "Eles podem ser bem-feitos ou malfeitos, triviais ou inspirados. Exigem do historiador uma abordagem diferente da que demanda um Tintoretto, mas dão muito prazer. Realmente acho que certos tipos de arte comercial -pôsteres, digamos, ou a obra de Saul Steinberg- são no nosso tempo mais criativos que a arte produzida em estúdio. O mesmo é verdadeiro em relação à fotografia e até mesmo à propaganda."
A falta de interesse de Gombrich pela arte moderna também foi objeto de exageros. Indagado sobre os artistas do século 20 que significaram mais para ele, à parte Picasso, menciona Paul Klee ("tão inventivo e despretensioso"), Magritte e Morandi; entre os contemporâneos, Bridget Riley, Anthony Gormley e Lucian Freud ("um maravilhoso artesão. Tenho uma enorme admiração por ele, mas quem não tem?").
Inegavelmente, as idéias de Gombrich, e o seu gosto formaram-se na Viena da virada do século. "Tenho um certo preconceito, não contra a arte contemporânea, mas contra o modelo teórico das escolas de arte. Artistas jovens estão sendo induzidos a abraçar uma ideologia que abarca, a um só tempo, a auto-expressão e aquilo que Karl Popper chamava historicismo. Tudo baseado na idéia de fazer algo novo, atrair atenção e, graças à mídia, tornar-se famoso por um dia ou um pouco mais que isso. Eu não afirmaria que não me deixo tocar ou que não me interesso pela situação atual. Desde a conquista da realidade pela fotografia, a arte se tornou muito difícil. As escolas de arte ainda promovem a idéia de que se deve combater a burguesia ou a academia, mas isso agora parece equivalente a lutar contra um fantasma".
Gombrich diz isso com tristeza, não com impertinência, e acrescenta: "Também é preciso lembrar que eu estou velho e que, para mim, o acesso às galerias já não é assim tão fácil. Pode ser que eu não tenha entendido a arte contemporânea. Mas 'você não entende' não é uma resposta satisfatória. Às vezes você entende e continua não gostando".
Se ele sente que o tipo de público para o qual escreveu "A História da Arte" deixou de existir? "Para minha surpresa, esse não é o caso. Pense no incrível sucesso de exposições como a de Vermeer, a de Monet, a de Frans Hals e a de Cézanne. Ainda há uma grande vontade de conhecer a arte do passado. Pode ser uma reação. E pode ser que os montantes elevados que se pagam por obras de arte tenha tido alguma influência. Talvez seja um tipo de atalho -é mais fácil absorver rapidamente uma pintura do que ler uma peça de Shakespeare. Mas, trate-se de turismo cultural ou não, é fato dado."
Gombrich certamente contribuiu para a maneira como as pessoas olham os quadros. Ele é um cético e um desmistificador. Apóia-se tanto nas descobertas da ciência quanto nas da psicologia. E pode revelar-se tremendamente apegado às próprias opiniões, como quando disseca o culto "regressivo" da arte infantil e do primitivo no Ocidente moderno. Ele não gosta de tratar a arte como auto-expressão, mas como resultado de tradições reconhecíveis e de técnicas passíveis de discussão. Mas também reconhece "os limites do explicável". "Frente ao retrato do papa Inocêncio 10, de Velázquez, uma parte de mim simplesmente deseja afirmar que se trata de uma obra-prima, e então calar."
Mesmo apreensivo em relação ao título "The Essencial Gombrich", que poderá soar imodesto, o historiador está satisfeito com a existência da coletânea -se não for por um motivo melhor, ao menos por corrigir a impressão de que ele é um homem de um ou dois livros. Na verdade, Gombrich tem 14 obras publicadas, aí incluído um importante estudo sobre as artes decorativas ("The Sense of Order"), uma biografia de Aby Warburg e quatro volumes de ensaios em sua especialidade, a Renascença. Ainda ávido leitor de outros autores, ele mostra um estudo das pinturas rupestres de Chauvet que está escrevendo -aqui um bisão, um cavalo acolá- e, com ares de aprovação, murmura um comentário sobre a sutileza das linhas e das cores. "Imagine só: 15 mil anos antes de Lascaux, 30 mil anos antes da nossa era. Na verdade, não deveriam ter existido. Só se pode ficar maravilhado."
Gombrich vem-se deixando maravilhar pela arte desde um tempo que ninguém mais consegue se recordar. Que siga assim por mais uns bons anos. (BLAKE MORRISON)

Tradução de Tania Marques.

O livro:
"The Essencial Gombrich", editado por Richard Woodfield, foi publicado pela Phaidon Press/Chronicle Books (624 págs., US$ 49.95).

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