São Paulo, domingo, 12 de janeiro de 1997
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Ecos das múltiplas vozes de Orfeu

LÊNIA MÁRCIA MONGELLI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Desde sua estréia com "Cantos do Arco da Serrania" (que em 1986 recebeu o Prêmio Revelação da Associação Paulista de Críticos de Arte -APCA), Mauro Valle -agora assumindo o próprio nome e abandonando o pseudônimo de então, Terêncio de Évora- é o que se pode considerar um poeta fiel a si mesmo e a uma concepção muito nítida do que seja e de qual a função da poesia, resumida na busca da "paz incerta" que provém de "compreender as pessoas por missão".
Embora de lá para cá tenha encontrado voz pessoal, de aliciante modulação, o magistério de Fernando Pessoa/Álvaro de Campos continua transparente: no 53º poema da série, que fecha o livro, o "eu", vendo-se como "poeta louco", preso ao torvelinho das "horas absurdas" e sentindo-se "exilado aqui como em qualquer lugar onde esteja", denuncia a sua "agonia de viver" sob os "clarões urbanos" de "mentores cibernéticos".
Como neste texto, ecoam pela obra afora versos de inspiração pessoana: "...as horas que descem abrigam a viagem que não farei" (pág. 19); "...meu coração como um cântico parado" (pág. 61); "Eu que quis exprimir-me como máquinas gargalham" (pág. 90). Ilhado em si mesmo, como o esteve sempre o vate "engenheiro" português, o poeta faz explodir sua solidão no grito revoltado, de indisfarçável superioridade: "Eu só canto para Deus" (pág. 90). Como se observa, mais do que Pessoa, é o próprio espírito do Orfeu lusitano que ressuscita dessas páginas.
Contudo não se equivoque o leitor: nada há aqui de glosa do heterônimo e muito menos de plágio; quando muito, reminiscências de leituras várias, identidade de sensações impregnadas no subconsciente, parentescos "românticos" de "almas gêmeas" etc. -naquela multiplicidade de veredas que desembocam em toda poesia de qualidade. As ressonâncias de Mauro Valle remontam inclusive ao Bandeira de "Pasárgada", em que talvez se tenha inspirado para se refugiar nas "ruas fictícias de Abernéssia".
Nascido e criado em Campos do Jordão, Mauro encontra na "vertente serrania" -obsessão que o persegue desde a primeira obra- motivos inesgotáveis de mistério e reflexão. O seu "bucolismo", se é que o termo não desmerece o conteúdo, é de matiz épico, construído em versos brancos de larga heterometria e superior domínio de rimas toantes, às vezes com belos momentos de perfeita cadência (como ocorre no longo poema 22, de 631 versos, que acolhe todos os ritmos, inclusive linguajar e neologismos de romanceiro). A solidão majestosa da natureza circundante, apreendida em suas inaudíveis vozes ancestrais, é perpétua denúncia, para quem sabe ouvir, dos tantos desacertos da condição humana, postos à prova em nosso dia-a-dia de civilizados fartos de certezas.
E que Mauro Valle é excelente "ouvinte" desses sons mudos provam-no os seguintes versos, que delego ao juízo crítico do leitor: "Rua que me leva com seu cão segredo/ Como uma idéia de faia e alvenaria/ Ou ocasião de jardim cujas flores são loucura/ E se vestem como gueixas/ Ali se amotinou a horda de todas as neblinas /Aquilo era a foz de uma tristeza?" (pág. 89).

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