São Paulo, segunda-feira, 13 de janeiro de 1997
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Ficção e realidade viram assunto judicial

ESTHER HAMBURGER
ESPECIAL PARA A FOLHA

O universo ficcional das novelas está em questão. Passada a época em que se criticava a manipulação fantasiosa de "O Sheik de Agadir", agora se disputa o caráter de tribuna pública da novela.
O privilégio da fantasia deslocada de qualquer referência explícita a algum contexto específico no tempo ou no espaço dos dramalhões de Glória Magadan foi cada vez mais invadido por outros gêneros e apelos.
O recurso a referências a acontecimentos, dilemas e figuras da atualidade, próprio do folhetim francês do século 19, usado também no chamado cinema clássico de Hollywood, se tornou elemento plenamente orgânico nas novelas. É uma convenção de narrativa que chega até a ofuscar o teledrama.
Exemplos da plena integração da novela no espaço público não faltam. Na última quinta-feira, o ator André Gonçalves, atualmente no elenco de "Salsa e Merengue", denunciou mais uma agressão física (esta teria sido a terceira) sofrida por conta de ter representado o personagem gay Sandro na novela "A Próxima Vítima".
Para não mencionar o diálogo virtual entre um senador de verdade e um senador de novela sobre questões da política nacional como o novo ITR e a nova Lei de Diretrizes e Bases, já comentado aqui na semana passada.
A polêmica em torno do chute proferido pelo pastor da Igreja Universal Sérgio Von Helder em uma imagem da Virgem Maria durante um programa da TV Record é mais um exemplo da diluição de fronteiras entre os domínios da ficção e da notícia.
Segundo o antropólogo Eric Kramer, da Universidade de Chicago, há referências às novelas nos documentos do processo contra o pastor evangélico.
Ainda que tais referências não sejam centrais nem façam parte do argumento legal da defesa, procuram minimizar a ação do pastor por meio de comparação com ações semelhantes que personagens de novela teriam praticado.
Ao enfatizar a diferença de repercussão de imagens veiculadas no noticiário e em novelas, os advogados do pastor reafirmam a separação entre o domínio da ficção e o da notícia.
Para eles, uma ofensa indevida ficaria impune quando ficcionalizada e proferida no universo da novela, enquanto ganharia imensa repercussão no noticiário. Mas reclamam do tratamento desigual recebido por personagens e pessoas físicas.
A promotoria rechaçou o argumento da defesa, argumentando que não cabe discutir ficção no âmbito de um processo judicial. Mas a defesa insiste. E o poder judiciário se vê às voltas com a inglória demarcação dos limites entre os domínios da ficção e da notícia.

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