São Paulo, sexta-feira, 17 de janeiro de 1997
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Na grande liquidação, é pegar ou largar

CARLOS HEITOR CONY
DO CONSELHO EDITORIAL

Olhos fatigados pela leitura de Tácito, cabeça entupida de nomes e datas, decido relaxar. Hesito entre um CD com as antífonas de Palestrina, acompanhadas de um charuto e algumas doses de uísque, ou apenas olhar a Lagoa que fica muito bonita depois de um temporal, lavada da poeira e do calor de um dia de verão.
Vou buscar a caixa dos Romeos y Julietas, tenho a infeliz idéia de ligar a TV, dar um giro pelos canais e sacramentar a certeza de que nada ali me interessaria.
Dou de cara, outra vez, com o senador Pedro Simon, num terno claro de turco de prestação, mas cuja oratória -conforme registrei em artigo passado- muito me fascina.
Desta vez, até que me esqueci de fruir seus gestos, gestos em todas as direções e sentidos. Prestei atenção ao que ele dizia e surpreendi-me concordando -pior, achando que, com irrelevante troca de palavras e sintaxe, ele expressava as minhas idéias, espantos e pânicos.
Veio depois outro senador, que eu não conhecia, cujo nome não saberia associar a um Estado ou a um partido: Jeferson Peres (não sei será Jefferson Perez). É do PSDB e representa o Amazonas no Senado.
Tem oratória curta, não faz gestos, se Pedro Simon agride o espaço com a força de uma Sete Quedas, Jeferson Peres (ou Jefferson Perez) brota suavemente do chão, como olho de uma mina subterrânea e clara.
O que interessa é que também ele me surpreendeu, estaria falando por mim se acaso eu pertencesse a um partido político.
Simon comentava uma vez mais a emenda da reeleição, armadilha moral e política que a vaidade e a ambição de um presidente da República estão colocando no destino e na biografia de um homem chamado Fernando Henrique Cardoso.
Não apresentou argumentos novos, tal como não há argumentos novos para se condenar o massacre de criancinhas ou o envenenamento dos rios e mares. Simplesmente, são coisas que não se fazem, como meter o dedo no nariz e dizer porcarias durante as refeições.
Já o senador amazonense falava sobre o escândalo da lista do Banco do Brasil, revelando o que ouvira dias antes: com o tema da reeleição na ordem do dia, só um idiota ainda iria se lembrar de cobrar a decência de uma apuração.
Correligionário do presidente da República, atribuindo-lhe qualidades seráficas, ele insistia em que o tema da reeleição, apressada e ilegalmente jogada na convocação extraordinária do Congresso, se outros malefícios não tivesse, tinha o de jogar na lixeira o caso da chantagem feita contra políticos suspeitos de não aprovar o apetite de poder do sr. Fernando Henrique Cardoso.
Também ele advertia o presidente da República sobre a armadilha que, açodadamente, armava-se contra o seu governo e, de quebra, contra a sua biografia.
Alterando a Constituição em benefício próprio, quando reformas mais urgentes e prioritárias podiam estar sendo processadas, a emenda da reeleição tornaria o sr. FHC refém por dois ou seis anos de mandato -um crime histórico contra a nação e o povo.
Esqueci Palestrina, o charuto e o uísque, fiquei prestando atenção aos debates dos "Pais da Pátria" que agora dispõem de um canal na Net. Para falar a verdade, estava exultando.
Os dois senadores, um do Sul, outro do Norte, diziam em essência o que todos os homens decentes estão pensando da reeleição, cujo subproduto tático foi remeter o escândalo das listas do Banco do Brasil para uma época anterior ao rapto das Sabinas ou contemporâneo das Guerras Púnicas.
Além dos dois oradores que discursavam (um estava na tribuna, o outro na bancada, aparteando a favor), havia um senador muito jovem ocupando a presidência, tão alheio e neutro como um funcionário da casa.
Parecia nada ter a ver com o debate, sua função era empertigar-se toda a vez que Simon ou Peres, por força da oratória, diziam um "senhor presidente" como se dissessem: "vírgula", "ponto e vírgula", "aspas", "parênteses".
Naquela hora, com apenas cinco ou seis senadores no plenário, onde se ouviam palavras sensatas e desesperados apelos à ética, os demais senadores deveriam estar se espremendo na fila do gabinete presidencial, no assanhamento que precede a votação das medidas de interesse presidencial e que abrem, escancaradamente, o balcão dos negócios.
O clima em Brasília era o equivalente ao de uma grande liquidação, dessas de queimar estoques a preços de salvados do incêndio, quando sacoleiras profissionais se atiram nos balcões disputando retalhos com o furor de canibais esfomeados diante da carcaça de um bezerro.
Ao pensar na cena -a classe política espremendo-se nas ante-salas presidenciais, esbaforida, disputando pedaços de chita e sobras de cambraia- perdi a vontade de continuar assistindo a sessão do Senado. Fui ouvir Palestrina, a bela antífona "Terra Tremuit".

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