São Paulo, domingo, 26 de janeiro de 1997
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Conforto de casado, alegria de solteiro

ROBERTO CAMPOS

"Sugerimos em outros trabalhos que, em certos períodos da vida política, a relação entre a sociedade civil e o Estado parece dispensar a intermediação dos partidos e as classes apropriam-se de segmentos do aparelho estatal para defender, a partir deles, seus interesses".
Fernando Henrique Cardoso (1977)

Carlos de Laet costumava dizer que nossa República Velha era uma dama que dava à luz de quatro em quatro anos e gastava dois anos nas dores do parto. O período útil de governo parecia assim demasiado curto para o desenrolar de planos consistentes de ação. Ou então o processo eleitoral teria de ser consideravelmente agilizado.
Em nossa história republicana, os mandatos presidenciais têm variado: quatro anos (República Velha), cinco anos (Constituições de 1946 e 1967), seis anos (último governo militar, do presidente Figueiredo), voltando-se a cinco anos na Constituição de 1988 e quatro anos na revisão constitucional de 1993. Em todos os casos, vedada a reeleição imediata. Houve naturalmente exceções. O primeiro presidente militar, Castello Branco, contentou-se com três anos e Getúlio Vargas esticou sua presença por 18 anos, tendo sido sucessivamente chefe de governo provisório, presidente eleito pelo Congresso, ditador e presidente constitucional por eleição direta. Getúlio foi um museu ambulante de formas de governança...
O tema da reeleição surge agora como "casuísmo". Casuísmo é o entortamento da regra para atender a uma situação talvez efêmera. Não há como esquecer que o PSDB, inclusive FHC, se pronunciou maciçamente na época da revisão constitucional de 1993 contra a tese da reeleição. É que na época os "casos" eram pouco atraentes. Os dois candidatos mais "presidenciáveis" de então pareciam ser Brizola, que já tinha demonstrado capacidade para arruinar o Rio de Janeiro, e Lula, cujas posições desatualizadas (estatizantes e xenófobas) lhe davam credenciais para replicar a façanha em escala nacional... Ninguém esperava que surgisse tão cedo um "caso" favorável.
Agora o PSDB apóia o "casuísmo" porque entende ter nas mãos um "caso simpático". FHC tem bastante brilho conceitual, antenas ligadas para a modernidade, visão reformista e boa imagem internacional (é o primeiro presidente "exportável" que temos há anos). O que lhe falta é dinamismo executivo. E o tumulto ideológico do PSDB faz com que seu governo fique parecido com uma UNE de direita, com retórica melhor que a ação. De outro lado, o que sobra ao seu principal contendor, Paulo Maluf, é capacidade executiva, sobejamente demonstrada, tanto na governança como na Prefeitura de São Paulo. Além de ser um privatista genuíno e não um recém-convertido. Certamente não se intimidaria com os arreganhos da Petrossauro e da Velessauro, que querem a segurança da estatal e a flexibilidade da empresa privada, situação equivalente a conciliar o conforto do casado com a alegria do solteiro. Essa façanha só um gênio como Picasso conseguiu realizar impunemente...
Em outras palavras, FHC é um "thinker" (pensador) e Maluf um "doer" (fazedor). Isso levou um amigo meu a dizer que a utopia ideal para o Brasil seria um parlamentarismo presidencial (ou um presidencialismo parlamentar, à la francesa) em que FHC fosse presidente e Maluf, primeiro-ministro. Trata-se obviamente de uma utopia, pois inexistem as condições institucionais e não há compatibilidade de gênio entre os personagens...
"Rebus sic stantibus", só existem três soluções para se atender ao objetivo do alongamento do prazo do mandatário para implementação de seu programa de ação: reeleição, prorrogação do mandato e parlamentarismo. Esta última solução foi rejeitada em plebiscito, infelizmente. E os dois últimos mandatos "alongados", de Figueiredo e Sarney, não foram entusiasmantes...
Resta a hipótese da "reeleição", que é objeto da emenda constitucional 54/95, ora sob exame no Congresso. É obviamente um "casuísmo", pois permite a reeleição dos atuais ocupantes do Poder Executivo (em todos os níveis), mudando-se as regras do jogo durante o jogo. Com a agravante de não se exigir a desincompatibilização dos incumbentes, que reteriam em suas mãos toda a parafernália do poder.
Os membros da comissão especial da Câmara que aprovaram a emenda obviamente não deram bola para a advertência de Alexis de Tocqueville, o famoso autor do "La démocratie en Amérique", sábio e profeta:
"A intriga e a corrupção são vícios naturais dos sistemas eletivos... Quando... o chefe do Estado mesmo se põe em luta, toma emprestado para o seu próprio uso a força do governo."
Surgem dois problemas com a emenda da reeleição. O primeiro é o da "legitimidade" da mudança das regras do jogo depois de iniciado o jogo. O segundo é o do "entorno institucional" do país.
A questão da "legitimidade" é de solução fácil, conquanto dispendiosa, através de um "referendum" ou "plebiscito" popular. O Congresso buscaria a sanção do poder original -o povo- para a mudança das regras do jogo.
Muito mais difícil é o segundo problema -o do "entorno institucional" inadequado. Exigir-se-ia uma reforma política muito mais ampla, visando inclusive ao fortalecimento do Legislativo, para evitar um "desbalanceamento" entre os Poderes.
Nosso "entorno institucional" é substancialmente diferente do americano, onde a tese da reeleição se revelou operacional. Lá funcionam apenas dois partidos, que se vigiam mutuamente com feroz aspereza. Não existem cargos de estatais a ser distribuídos em penca, e o sistema financeiro é inteiramente privado. Aqui, se vingar a tese da reeleição sem desincompatibilização, o candidato incumbente viajaria no avião presidencial, acenando com um persuasivo cheque do BNDES em breve prazo, e com o Serjão pela retranca, com cargos nas "teles" e amenidades para os concessionários de rádio e televisão. Sem falar, naturalmente, nas ameaças da Receita Federal. E o governo reteria, obviamente, o poder de emitir "medidas provisórias", engenhoca que só faz sentido no parlamentarismo, no qual a rejeição de uma MP poderia provocar queda do gabinete.
Por esses motivos, sempre achei que a tese da reeleição, se aceita, só poderia sê-lo para os futuros mandatários, ficando entendido que no interregno se procuraria melhorar o "entorno institucional". De outra maneira, aos "casos simpáticos", poderiam suceder-se "casos terríveis". As linhas das reformas políticas desejáveis são conhecidas: compactação dos partidos pelo voto distrital misto e pela "cláusula de barreira", fidelidade partidária e correção das distorções da representação popular na Câmara dos Deputados. Aprovada a reeleição só para os futuros mandatários, haveria tempo para essas reformas políticas não menos importantes e urgentes que as reformas econômicas.

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