São Paulo, domingo, 26 de janeiro de 1997
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A variada identidade do americano típico

JOÃO ALMINO
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE SÃO FRANCISCO

Nestes tempos politicamente corretos, as identidades étnicas, raciais ou de gênero criam gavetas para a produção artística nos EUA. A lista do artista americano -digo americano sem outra qualificação- vem diminuindo, embora, mesmo nas novas gerações, ainda se encontrem talentos ocupando seu espaço fora das gavetas gay, afro-americana, indígena, hispânica, asiático-americana ou das mulheres. Na literatura, entre os jovens, gente como Michael Chabon, Ethan Canin, Donna Tart ou Mary Moore.
Por que a escritora Gish Jen não poderia ser só americana? Se fosse branca e descendente de ingleses, suecos ou alemães, daria para disfarçar. Mas filhos de chineses não têm escapatória. Sua gaveta já os espera, mesmo que os autores recusem o rótulo. É a própria Gish Jen quem disse em artigo recente: "Certas etnias são mais visíveis que outras; a chinesa, por exemplo, mais que a irlandesa (ela é casada com um irlandês). Isso tem a ver não só com a distância relativa entre certas culturas e a cultura americana preponderante, mas também com a raça. Pois não apenas certas etnias são mais visíveis que outras; também certas cores: o preto é mais visível que o branco, por exemplo; o mulato não é um tipo de branco, mas de preto".
Na sua literatura, Gish Hen poderia ter seguido o caminho bem sucedido de Amy Tan e outros escritores asiático-americanos: rememorando um passado chinês, contribuiria para reforçar a incorporação à cultura norte-americana de uma identidade perdida ou ameaçada. Poderia também considerar que ser descendente de chineses é só um acidente e tratar dos temas que lhe interessassem.
Não faz nem uma coisa nem outra. Lembra, traduzido para a identidade sino-americana, o que Julia Alvarez fez em relação à dominicana, só que sua temática é mais variada. Seu último livro, "Mona in the Promised Land" (Mona na Terra Prometida), reflete, ao mesmo tempo com seriedade e humor, sobre a identidade norte-americana como se fosse algo não apenas em construção, mas também fluido e mutável. Como se fosse possível saltitar de uma gaveta para outra. A palavra-chave do romance é "switch", ou seja, "mudar", no caso mudar de etnia, de nacionalidade, de cultura, de religião. Ela se apresenta já nas primeiras páginas, no diálogo entre Mona Chang, filha de chineses, e seu novo colega japonês Sherman Matsumoto, que será, de forma um tanto ambígua, seu primeiro namoradinho: "Você pode se tornar americano... Como eu poderia me tornar judia, se quisesse. Só teria de mudar, só isso".
No subúrbio nova-iorquino de Scarshill (alusão a Scarsdale), para onde se muda com a família em 1968, a adolescente Mona se torna judia e ganha o apelido de Changowitz: Seth Mandel, o namorado judeu, está sintonizado com o Oriente. A afro-americana Naomi conscientiza Callie, a irmã de Mona, com quem divide um quarto, de sua cor amarela, contribuindo para que Callie acabe se tornando "mais chinesa do que Seth". É como se Gish Jen chegasse à conclusão de que não existe "O Americano Típico", título de seu livro anterior, que contava a história da emigração de Ralph Chang, o pai de Mona, de Shangai para os Estados Unidos. Ou, de forma mais interessante, que ele existe sim: é uma mistura de identidades.
O termo exato não é, porém, "mistura". Se Gilberto Freyre provocara protestos de leitores americanos nos anos 40, em cartas a jornais, por valorizar a mistura racial, hoje suas teses talvez causassem espécie por não valorizarem o bastante os limites de identidade entre as raças. Aqui não há lugar para o moreno. Em sua riqueza e variedade, as culturas se afirmam uma ao lado da outra, como na cozinha do restaurante da família Chang, onde trabalham pretos, hispânicos, judeus e chineses. Mas os experimentos de convívio, sobretudo entre judeus e asiáticos, de um lado, e pretos, de outro, como os narrados no romance, não chegam a funcionar.
Mona tem um sonho. Helen, sua mãe, está dando à luz um bebê, que é também o bebê que ela, Mona, está parindo. Sua mãe "grita: 'Este bebê é judeu! Jogue-o no lixo!' e não se acalma enquanto a própria Mona não se joga no lixo. Este parece ser sobretudo papel, mas acaba tendo berinjela no fundo, que Mona pensa ser italiana. Helen insiste, porém, que é chinesa; e, quando Mona olha de novo, vê que sua mãe tem razão. Não há mozarela". Na vida real, Gish Jen decidiu que só mais tarde vai ensinar seu filho de quatro anos, metade irlandês e metade chinês, a se definir independentemente da raça. Por enquanto, vai colocá-lo na escola chinesa.
O americano típico talvez seja também gente como Mona. Fica, contudo, a pergunta: que identidade pode ter a fluidez da identidade? No livro há passagens que sugerem que "quanto mais judia você se tornar, mais chinesa você será". Há também uma insinuação no sentido inverso: é possível que, como uma vez pensou, por ser sempre forçada pelos outros a se lembrar que é chinesa, Mona se torne mais judia. Por meio dessas idéias, Gish Jen afirma que, na essência, somos humanos, universalmente humanos.

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