São Paulo, domingo, 26 de janeiro de 1997
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Convite à comédia

MARTIN AMIS
ESPECIAL PARA O "THE INDEPENDENT"

Fiz a resenha do livro "Crash!" quando de seu aparecimento em 1973; recordo que o romance de Ballard foi recebido pela crítica com uma súbita comoção nervosa. É claro que esse é o tipo de reação que os próprios resenhistas não admitem como tal e, por isso, vem mascarada de Desdém Estético ou Afronta Moral.
"Crash!" provocou muito carnaval. Alguns resenhistas foram buscar no dicionário o termo "repugnante"; os mais contidos alegaram achar o romance "maçante". Não sei se alguém mais teria usado o mesmo disfarce que eu: sarcasmo. Arrogante (e nervosamente), zombei de "Crash!". Tinha 23 anos. Um pouco depois, naquele mesmo ano, meu primeiro romance foi lançado e, como Ballard, fui acusado de expor uma "mórbida sexualidade". Se comparados, entretanto, minha sexualidade e meu romance eram subservientemente convencionais.
Um lugar óbvio para se banir "Crash!", se se quisesse, seria a vanguarda dos neo-60, associada ao teatro de protesto, à pintura conceitual, à instalação e à ficção experimental. Originalmente um proponente da ficção científica pesada (e sua estrela mais brilhante neste país), Ballard adentrava a maturidade e libertava-se do gênero -estava, de fato, a caminho de se tornar sui generis. Emergindo de um ambiente de surrealismo, de ativismo cultural, de hiperpermissividade e ácido lisérgico, "Crash!" fazia parte do tradicional período concreto-e-aço de Ballard, assim como "The Atrocity Exhibition" ("A Exibição da Atrocidade", 1970), cujas seções tinham títulos sugestivos como "Por Que Desejo F... Ronald Reagan", "O Assassinato de John Fitzgerald Kennedy Considerado como uma Corrida Motorizada Morro Abaixo" e, sem dúvida, "Crash!"!
Após sua publicação "Crash!" estabeleceu-se como um clássico cult. Ballard era de qualquer maneira um autor cult. E era a um cult que eu pertencia. Devotos reunidos poderiam passar noites inteiras orientando uns aos outros sobre o universo de Ballard, bonito, excessivo, esquemático e absurdamente sisudo. Talvez seja instrutivo aqui distinguir o conhecedor de Ballard do mero admirador. Embora compartilhasse da reverência geral por "Império do Sol" (1984), o verdadeiro cultor também sentiu-se ligeiramente traído por esse romance. Não porque tivesse conquistado uma larga audiência e perfurado o círculo cult mais fechado. Não, sentimo-nos traídos porque o "Império" nos mostrou de onde provinha a imaginação de Ballard. O bruxo havia revelado a fonte de todo seu fervor e magia.
Pareceu ser uma decorrência ballardiana natural: "Crash!" ser levado às telas pelo notoriamente destemido -e cultista- David Cronenberg, que fez o igualmente infilmável "Almoço Nu". Cinematograficamente, porém, Burroughs está cheio de possibilidades exuberantes, ao contrário do olhar duro de "Crash!", cujo tema é a sexualidade dos acidentes rodoviários, olhar que não pisca uma única vez em 225 páginas.
O argumento do livro desenrola-se a partir da colisão frontal entre o carro do narrador (chamado, descompromissadamente, James Ballard) e o de uma médica. No acidente morre o marido dela. No filme, ele é atirado pelo pára-brisa de um carro, entrando pelo do outro: no livro, ele morre no capô do carro de Ballard. Os dois sobreviventes entreolham-se.
Ele volta a encontrá-la -no hospital, no pátio da polícia. Pesar, culpa, agressão, uma mesma sensibilidade e indiferença às várias contusões e cicatrizes: tudo leva, com inquietante plausibilidade, a um caso amoroso desafeiçoado (e "auto-centrado"). Assoma agora em circunlóquio a figura de Vaughan pelo romance -Vaughan, o "cientista desordeiro", "o horripilante anjo das vias expressas", seus couros fedendo a "sêmen e líquido do radiador". Nesse ponto "Crash" despede-se da plausibilidade e da inquietação e submete-se à obsessão generalizada. Sob o domínio de uma "psicopatologia benevolente", uma "nova lógica", todo o elenco se movimenta ansiosamente em direção a um "autogedon" de perfis feridos e mortes sexuais.
Cronenberg teve que apreender essa visão e submetê-la ao literalismo do filme. Optou também por transportá-la no tempo: quase um quarto de século. Parece-me que todas as dissonâncias do filme advêm desse deslocamento. Em 1973 talvez o automóvel pudesse ser visto como algo erótico, evocando liberdade e poder. Em 1996 as associações apontam em outra direção, para a banalidade: revezamento de carros, combustível sem chumbo e asma. Hoje em dia o pobre e velho engarrafamento não evoca senão um rançoso estoicismo. Cronenberg poderia da mesma maneira ter optado por rabos de peixe, calças boca-de-sino, minissaias e coques em estilo ninho, já que insiste, tão sem remorso, em enquadrar a trama ao momento histórico. O sexo é pré-Aids; o indolente sensualismo é pré-inflação; até as estradas são pré-engarrafamentos. Estes ardis podem parecer pedestres, pouco elaborados, mas a cultura do carro é pedestre, também, à aproximação do novo milênio.
Por outro lado, é deliciosamente nostálgico e triunfantemente retrô ir ao cinema e assistir a um filme de arte inteligente e incomum. Cronenberg de alguma maneira captou o equivalente cinematográfico do olhar hipnótico de Ballard: a perniciosidade, a fixidez esquálida. Ao excluir o bom senso (e consequentemente todo humor), a obsessão se torna um convite à comédia, e "Crash" é quase um filme muito engraçado. Por uma lógica semelhante, a violência monomaníaca acaba por relembrar de seu oposto. O espectador sai do cinema sentindo-se peculiarmente frágil. O final de Cronenberg não faz parte do livro de Ballard, alcançando uma modulação trágica em meio a toda esqualidez e passividade.
Ao contrário do filme, o romance é indiferente à passagem do tempo e não perdeu atualidade em 25 anos. É como um caso clínico de choque crônico, que, confuso, o paciente gostasse de receber. A prosa permanece o meio mais contundente para focalizar a obsessão, não tanto pelo que se possa adicionar, mas pelo que se pode omitir. Os ritmos de Ballard controlam tudo: a multidão, o tempo, o movimento escultural das auto-estradas. Somente nas histórias reunidas sob o título de "Vermilion Sands" (1973) ele repetiu a mesma translúcida precisão.

Tradução de Rachel Behar.

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