São Paulo, domingo, 26 de janeiro de 1997
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O avião em terra firme

JACQUES RANCIÈRE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Mas há também uma outra maneira, fundada no que se ignora ou no que se quer esquecer para se pôr face a face com a coisa, olhar as imagens e imaginar por si mesmo a fábula que o seu encadeamento nos propõe. Parte-se então do que nos mostram as primeiras imagens do filme: um hangar de aviões. Uma jovem aparentemente habitada por um desejo imperioso aproxima-se de um avião. Ela abre o seu corpete, retira um seio do sutiã, pressiona-o extaticamente contra o metal da cabine e inicia com a máquina um corpo-a-corpo erótico que a trilha sonora acompanha com o seu arquejo, digno da circunstância. Nesse entretempo, um homem que lhe chega por trás vem unir-se à festa e acaba por restabelecer à sua normalidade humana o prazer maquinal da jovem. Ao final do filme, veremos a mesma jovem estirada junto a seu automóvel capotado no declive de uma estrada; esquecendo suas contusões, ela fará amor com seu marido ou companheiro privilegiado, que muito se divertirá em lançar-lhe o carro por sobre a mureta.
O filme, em suma, poderia resumir-se ao seguinte: a história de uma aviadora que renuncia voar. Se ela estava no hangar, é porque busca um brevê de piloto, sem dúvida pela embriaguez de fender os céus com sua máquina de sonhos. Só que, nesse ínterim, seu companheiro a terá iniciado ao que ele próprio terá aprendido: há uma maneira toda especial de fazer amor com as máquinas e de as utilizar para a satisfação de seu desejo. Quanto aos prazeres, há que se preferir ao belo avião que fende os céus o automóvel lançado ao encontro com um outro: o automóvel que faz correr o sangue, quebra os membros, rasga a pele de cicatrizes, recobre o corpo de próteses, mas também, e sobretudo afinal, o automóvel que amassa, aniquila, despedaça, destrói, atiça as chamas.
Pode-se considerar então que o ponto aonde nos leva a fábula de "Crash" é o último episódio ou o fim da grande ópera de núpcias do homem e da máquina. E a imagem derradeira que sustenta a moralidade desse filme sulfuroso poderia ser tomada como a estrita contrapartida de uma outra imagem terminal, uma imagem literária, que marcaria o início dessa aventura.
Ao final de "A Besta Humana", depois que o condutor e seu foguista assassinaram um ao outro, pondo termo a uma longa história de desejos, de ciúmes e de loucura sanguinária, Zola nos descreve a locomotiva deserta, a seguir solitária por sua implacável linha reta e a conduzir, a despeito das vítimas esmagadas, "a humanidade rumo a seu futuro". E, afinal, o crime e a sandice de Jacques Lantier teria sido talvez preferir os deleites da carne feminina e do sangue humano ao amor fiel da máquina.
Inversamente, a grande utopia das máquinas que, nos anos 20, harmonizou as aspirações da arte cinematográfica com a grande empreitada da construção do novo homem seria a revogação da indignidade da "besta humana" em prol de uma humanidade harmonizada com a fiel exatidão da máquina. "A incapacidade de os homens saberem se conter nos envergonha perante as máquinas", julgava Dziga Vertov, opondo as "maneiras infalíveis da eletricidade" à "agitação desordenada dos homens ativos e a moleza corruptora dos homens passivos".
É bem a desforra do homem desordenado e a sua "moleza corruptora" que faz a obstinação dos heróis de "Crash" verem no automóvel uma simples máquina de acidentes para suscitar o prazer. E, lá onde alguns vêem celebrada a figura futurista da utopia do homem híbrido com a máquina, eu veria antes a liquidação da utopia secular do par entre o novo homem e a máquina dos sonhos. Por fim, o filme nos mostra que a única máquina resistente é a pequena máquina sexual humana, a qual se serve das máquinas metálicas e de sua destruição, embora possa muito bem passar sem elas e contentar-se, para atingir os seus fins, a usá-las como meio, como nos mostra o casal em destaque. E todas as cenas de horror e de orgasmo automotivos poderiam afinal de contas não ser mais que histórias narradas ao pé da cama para colocar pimenta nos prazeres do casal.
Esse filme de pornoficção futurista nos apresentaria então uma versão ramificada e paradoxal do grande tema do fim das ideologias celestes e do retorno às simples e sólidas satisfações que a humanidade sabe se dar quando se desprende das utopias. Um filme "humanista", a seu modo. E, se recuarmos um século, poderemos ver nele também o regresso de uma outra cena: a cena de união entre o absoluto da liberdade e o absoluto do prazer obtido do corpo supliciado do outro, que Sade ilustrara à época da Revolução Francesa.
Num artigo intitulado "Kant com Sade", Lacan empenhara-se em mostrar como o caráter absoluto do imperativo sádico da submissão do outro ao meu prazer era a verdade oculta do aspecto incondicional da lei e do imperativo moral kantianos. Tudo se passa como se o filme invertesse a demonstração. Vejamos portanto as duas heroínas femininas se dirigirem a um estacionamento para aí fazerem amor dentro de um carro. Tudo se passa como se elas lá fossem cumprir seu dever: dever fixado pelo roteiro, antes de tudo. As demais combinações heterossexuais ou homossexuais foram esgotadas e cabe-lhes a vez de tocar o barco adiante -o que elas fazem sem frenesi aparente e sem interesse evidente do cineasta, que lhes abrevia a diversão.
Ora, este dever ficcional é em definitivo um dever moral: a afirmação do direito igualitário a todo casal heterossexual ou homossexual no tocante ao prazer fruído com o concurso da máquina. O jogo sádico das permutas tornou-se um contrato de gozo generalizado, e a violência sobre a qual ele repousava em Sade foi situada justamente nas relações do homem com a máquina. Tuda leva a crer que entre os parceiros reina um tipo de harmonia preestabelecida, na qual o prazer que um deseja obter do outro parece a cada vez perfeitamente ajustado ao que o outro deseja obter dele.
Ao negar o rótulo pornográfico aplicado a seu filme, Cronenberg opõe suas cenas sexuais às habituais histórias de amor e de sedução do cinema, que no fundo, diz ele, são cenas de estupro. Poderíamos responder que a história de amor tem isto, de fato, em comum com a crueldade sádica, que ela está sempre, por menos que seja, fundada na desigualdade de dois desejos. O que define ao contrário a cena pornográfica é a pressuposição de que os atos de um são precisamente o objeto do desejo do outro. Assim, a pornografia ilustra à sua maneira a versão liberal do contrato social. Isso se dá porque ela desenvolve seu império visual ao ritmo da evolução do neoliberalismo consensual. É o que a sequência final nos dá a ver e ouvir. "Tudo bem?", pergunta o herói à sua companheira, de quem ele acaba de arrojar o carro por sobre a mureta e agora se encontra prostrada na borda da pista de baixo. "Tudo bem", responde ela, resposta em que se há de entender não um relato de seu estado físico, mas um convite que diz: "Vá em frente. Em também desejo o que você deseja". Toda violência é assim reconduzida ao contrato, bem como todo poder da máquina ao do desejo humano. A anti-utopia do "brave new world" apresenta afinal uma parábola em tudo conforme ao pensamento reinante do "fim das utopias".

Tradução de José Marcos Macedo.

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