São Paulo, domingo, 26 de janeiro de 1997
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King pode render até US$ 20 mi por ano

CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
DE WASHINGTON

Embora os envolvidos não falem em cifras, as estimativas de especialistas do mercado publicitário são de que o projeto King vá render para a Time-Warner pelo menos US$ 10 milhões por ano entre 1998 e 2001 e que a família do Prêmio Nobel da Paz de 1964 vá receber a mesma quantia.
Esses cálculos enfurecem setores do movimento negro dos EUA que há muito tempo acusam Coretta King e seus filhos de mercantilismo. Um biógrafo de King, David Garrow, por exemplo, diz que, "se estivesse vivo, ele estaria nauseado com o fato de que o dinheiro produzido pelas suas idéias está indo para mãos de indivíduos, não para promover suas causas políticas".
Em Atlanta, Geórgia, o Centro para a Mudança Social Pacífica, fundado por Coretta King, divulga uma declaração de Dexter King, filho do líder negro, com a justificativa oficial da família para o projeto com a Time-Warner: "Os escritos e os pensamentos de meu pai têm sido negligenciados. Os meios de comunicação só se lembram de 'Eu Tenho um Sonho', que virou uma espécie de lugar comum, usado à exaustão. Era preciso fazer algo para revigorar as idéias de meu pai junto ao país".
Herança
Clayborne Carson, que teve seus momentos difíceis com a família quando descobriu que King havia cometido plágio em sua tese de doutoramento (leia ao lado), agora a defende: "King não deixou herança material nenhuma. O que ele deixou foram suas idéias. Então, o que a sra. King está dizendo aos filhos é que essa é a herança deles e que eles podem exercer os direitos de propriedade sobre ela. Você pode achar que isso é egoísmo. Mas será que eles teriam encontrado maneira melhor de expandir as idéias do pai?".
Carson, que é negro e escreveu sobre a escravidão no Brasil em sua primeira tese acadêmica ("Conhecer o seu país é um maiores sonhos da minha vida, ainda não realizado", disse ele à Folha), afirma que a admiração que sente por King não o impede de ser objetivo. "Eu expresso essa admiração estudando-o como uma pessoa que, apesar de ter tido falhas humanas, conseguiu realizar feitos extraordinários", afirma.
A leitura do primeiro e segundo volumes dos documentos de King revela como a autobiografia poderá ser atraente para os 33,5 milhões de negros nos EUA, que, na sua imensa maioria, como muitos milhões de brancos também, veneram King como quase um santo.
Veneração
O processo de canonização a que a imagem de King foi submetida após seu assassinato, aos 39 anos, em Memphis, Tennessee, sul do país, em 4 de abril de 1968, tornou quase impossível percebê-lo como indivíduo.
King virou um objeto de adoração. A leitura de suas cartas quando criança, adolescente e jovem estudante universitário redimensiona sua biografia, o "rehumaniza", ajuda a entender como se formaram o caráter e as idéias do mais importante líder pacifista do mundo desde Mahatma Gandhi.
King nasceu em 1929, em Atlanta, filho e neto de renomados pastores da Igreja Batista negra. Apesar de nunca ter enfrentado dificuldades financeiras, seu pai o obrigou a entregar jornais e a trabalhar como agricultor em fazendas durante as férias escolares "para combater sentimentos de superioridade de classe".
Aos 15 anos, ganhou concurso de oratória na escola com um discurso sobre "O Negro e a Constituição", no qual já se podia perceber o estilo retórico elegante e comovente que aprimoraria depois.
Após um período de dúvida sobre se deveria estudar teologia ou ciência, quando pôs em dúvida se "a religião, com seu emocionalismo nas igrejas negras, poderia ser intelectualmente respeitável", se resolveu pelo seminário de Crozer, onde era um dos 11 negros entre 90 estudantes e se tornou o presidente do diretório estudantil.
Quando estava em Crozer (Pensilvânia, Costa Leste), King escreveu um ensaio em que dizia ter experimentado o racismo pela primeira vez aos 6 anos, quando ele e seu melhor amigo, um branco, tiveram de ir a escolas diferentes e foram proibidos de brincar juntos.
"Eu fiquei extremamente chocado e, daquele momento em diante, me senti determinado a odiar toda pessoa branca. Eu só consegui controlar esse sentimento depois de ter entrado na faculdade e ter que trabalhar intelectualmente com brancos num ambiente inter-racial."
Depois de ter-se doutorado na Universidade de Boston, em 1955, ele assumiu uma igreja em Montgomery, Alabama, sul do país, onde iniciou sua luta pelo fim da segregação racial nos EUA, com um bem-sucedido boicote de um ano de duração contra o sistema de transporte coletivo da cidade, que obrigava os negros a viajarem na parte de trás dos ônibus.
King tinha plena consciência de que sua atuação política tinha dimensões históricas e procurou registrá-la ao máximo, o que viabilizou uma obra da dimensão da que a Time-Warner vai produzir.
Todos os seus sermões em Montgomery, por exemplo, eram gravados. Ele também tinha senso de mídia, intuição de como dar maior dramaticidade a seus discursos, como o "Eu Tenho um Sonho", aos pés do monumento a Lincoln.
Espionado pela polícia federal, assediado por racistas que o odiavam, combatido pelas facções do movimento negro que achavam seus métodos não-violentos ineficazes, King conseguiu manter a sobriedade.
Sua morte desencadeou uma onda de protestos de rua que colocaram os EUA à beira do colapso civil e tornou inevitável o fim da segregação formal no país.
Depois de ter sido santificado por negros e brancos, o verdadeiro Martin Luther King Jr. pode agora emergir desse milionário projeto multimídia.

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