São Paulo, domingo, 26 de janeiro de 1997
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Verão em excesso

ALEXANDRA OZORIO DE ALMEIDA; JACQUELINE LATTARI; DEBORAH GIANNINI

Em depoimento à Revista da Folha, 11 mulheres "muito grandes", que, juntas pesam uma tonelada, contam que a rejeição incomoda mais que a gordura
Alexandra Ozorio de Almeida
Jacqueline Lattari
Colaborou Deborah Giannini
"Quer ver como gorda incomoda?", desafia Maria Cecília Estevez, 43, 1,55 m, 70 kg. Ela levanta-se ao lado da piscina do clube em São Paulo, ajeita o biquíni e dá uma volta. O gesto atrai, imediatamente, vários olhares.
Acostumada a situações como essa, ela explica: "Sei que as pessoas olham, comentam. Já chegaram a me dizer 'sua barriga está horrível'. É pura maldade".
Maria Cecília, técnica de recursos humanos, é uma das mulheres que extrapola -em muito- os atuais parâmetros de beleza. Ignoradas pela mídia, que promove exemplares femininas cada vez mais raquíticas, elas enfrentam dificuldades bizarras e preconceito no dia-a-dia.
Comer um lanche no McDonald's? Pode ser um desafio, porque corre-se o risco de entalar entre a mesa e a cadeira, fixas no chão. Comprar um vestido que não fuja do modelo "jovem senhora"? Muito difícil, já que as lojas que vendem "GG" não costumam se preocupar com moda. Acordar de mau-humor e ir à padaria sem que ninguém olhe para a sua cara? Decididamente impossível.
"Gordo é ponto de referência. O sujeito diz: 'Olha aquela menina ao lado da gorda'... No meu caso, sirvo como dupla referência: sou a gorda de óculos", diz, bem-humorada, a numeróloga Cláudia Grisi, 32, 1,60 m, 130 kg.
A vida já difícil das "mulheres grandes" -o termo politicamente correto adotado nos EUA- torna-se pesadelo com a chegada do verão. Na estação dos biquínis, o bombardeio sobre o público feminino é mais intenso: "guerra à celulite", "a ginástica de Adriane Galisteu na praia", "cem truques para ficar magra e em forma nos dias de calor" são algumas das chamadas sobre emagrecimento encontradas nas bancas de jornal (veja quadro na pág. 16).
Para as "big women", é hora de colocar roupas mais leves, ir a churrascos e levar as crianças ao clube -ou seja, expor-se ainda mais.
"O gordo se esconde, não sai de casa. Ele só vai ao cinema porque é escuro. Foge até de restaurante, prefere pedir comida em casa", diz Cláudia.
A numeróloga, que começou a engordar depois que parou de jogar tênis, conta que é abordada constantemente na rua por pessoas oferecendo regime. "Você está no ponto de ônibus. Alguém começa a encarar, sorri, se aproxima e batata: dá uma dica de regime."
A pressão sobre essa nova minoria discriminada muitas vezes vem da família e do próprio "amado". "Meu marido cobra muito. Ele chega a dizer que só sairia comigo se eu fosse magra", conta Sônia Maria Lima, 33, 1,54 m e 78 kg.
Por experiência própria, as gordinhas dizem que seduzir homens não é o pior problema. O mais difícil é convencê-los a assumir a relação perante os amigos.
A modelo Suely Gonçalves, 35, 1,69 m e 82 kg, conta de um "namorado pelo qual foi apaixonadíssima" e que parecia sentir a mesma coisa por ela. "Um dia ele me disse: 'Você deveria emagrecer para tornar-se mais desejável'. Eu tinha sido desejável até aquele momento, mas, na hora de me apresentar para os amigos, seria um problema."
Mesmo quando recebe um elogio, a gorda em geral ouve: "Que rosto bonito!". Esse comentário revolta a atriz Valéria Sandalo, 29, 1,79 m e peso ignorado (mas nos três dígitos). "Detesto isso: a pessoa é bonita ou feia", diz.
Valeria é do tipo "gorda bonita e assumida". "Já tenho tantos motivos para ter complexo, não vou ter de gorda. Já tenho complexo de pobre, de desempregada..."
A atriz, que faz a voz da personagem "dona Chiarina" na peça "Pérola", tira de letra até os comentários mais grosseiros. Um dia, em um bar, ouviu um sujeito dizer: "Essa daí eu comia tipo rodízio porque, se fosse comer por quilo, sairia muito caro". "Consegui achar engraçado", diz.
Não que Valéria leve desaforo para casa. Ela diz que quando se sente ofendida "vira reacionária" e parte para a briga. "Se um baiano gritar 'bucho' na rua, chamo de nordestino, de baianinho subnutrido."
Para a atriz, é absurdo uma minoria atacar a outra. "Gordo na prática é minoria porque vive fora dos padrões."
Não há solidariedade nem de mulher para mulher. Soraya de Castro Guedes, 35, gerente de informática, 1,62 m, 120 kg, conta que, quando uma gorda encontra outra, as duas costumam ficar se encarando e pensando: "Será que eu estou desse tamanho?".
Ela diz que uma vez no trânsito uma mulher emparelhou com o seu carro. "Talvez eu tenha fechado o carro dela, mas nem notei. Ela abaixou o vidro e gritou: 'Sua gorda!'. Enchi a boca e respondi: 'Sua feia!'. E ela era horrorosa mesmo. Não sei por que ela achou que ao me chamar de gorda estava me insultando. É a maior realidade da minha vida", diz Soraya.
A opressão sobre as gordas mostra que, em uma sociedade que valoriza cada vez mais um abdômen bem desenhado, as pessoas se sentem agredidas por alguém -especialmente se for mulher- que acumula gorduras perto da axila ou estrias nas coxas.
Em 11 depoimentos colhidos pela Revista da Folha, "mulheres grandes" desfazem alguns mitos sobre a gordura:
1. Gordo é gordo desde criança?
"Comecei a engordar há quatro anos, quando parei de trabalhar. Antes de casar, tinha um peso bom. A rotina -lavar, passar, cozinhar- leva à gordura." (Derci Aparecida Boem, 38, dona-de-casa, 1,58 m, 70 kg)
"Engordei porque pesava 36 kg e fiz regime para ganhar peso. Eu não engordava de jeito nenhum, mas, de repente, explodi. Hoje me controlo: quando estou nervosa, engordo. Se emagreço demais, é porque não estou bem." (Amalia Aparecida Martins, 64, dona da loja "A Gorda Sexy", 1,60 m, 95 kg)
"Acho que decidi que seria gorda na hora em que nasci. Fui gordinha na infância e, na adolescência, fiz regimes mirabolantes. Fiquei com o sistema nervoso muito comprometido nessa fase. Me casei aos 19 anos, tive vários problemas e engordei 60 kg. Fiz muitas dietas, mas a maior vitória para um obeso não é perder peso, mas parar de engordar. Você estabiliza e só depois o peso começa a declinar. As pessoas não percebem. Dizem: 'Você está fazendo regime? Mas não emagreceu nada...'." (Soraya de Castro Guedes, 35, gerente de informática, 1,62 m, 120 kg)
2. Gordo vive em um ioiô de emagrece-engorda?
"Da minha experiência, sei que gorda nunca fica magra. Gordo, antes do corpo, tem personalidade gorda. Eu perdi 48 kg uma vez, passei a usar manequim 44. Estava magra, mas me sentia gorda. As pessoas se acostumam com um determinado tamanho. Você pode até estar magra, mas quando fecha os olhos, se sente gorda. Você se olha no espelho e não se vê magra. É por isso que tanta gente engorda de novo. A pessoa quer voltar a ocupar aquele espaço mental que fisicamente não ocupa mais." (Amalia Aparecida Martins)
"Já fui absurdamente gulosa. Era fome centrada na cabeça, e não no estômago. Comia até não caber mais e continuava comendo. Hoje, não quero nem pensar no que me fez comer daquele jeito. Engordei em um ano 35 kg. No segundo ano, mais 30 kg. Hoje, fico por aí -ganho uns cinco, perco cinco. Quando fazia regime, perdia 15 kg e engordava 35 kg." (Soraya de Castro Guedes)
"Sempre fui gordinha. Só me lembro de ser magra lá pelos 9 ou 10 anos. Tentei fazer alguns regimes com aquelas fórmulas loucas. Gastava um dinheirão, começava a tomar os remédios, mas depois jogava tudo fora porque passava mal. Tinha ansiedade, tristeza, chorava por qualquer coisa. Daí resolvi que era assim mesmo, que quem tivesse que gostar de mim teria de ser do jeito que eu sou." (Marli Caruso, 34, subgerente de loja, 106 kg)
3. É impossível arrumar namorado?
"Com essa barriga, já casei duas vezes e tenho um namorado. Tem muita magra por aí que nunca casou. O relacionamento homem-mulher está na cabeça. Não interessa se você está gordo, magro, se é feio ou bonito." (Maria Cecília Estevez, técnica em recursos humanos)
"Nunca tive problema de namorado. Sempre quis me casar, encontrar uma pessoa que gostasse de mim do jeito que eu sou, sem ficar me dizendo 'não tome sorvete, não coma muito, evite massas'. Se não for assim, não é amor. Só agora, aos 34 anos, encontrei a minha cara metade e vou me casar. Tenho amigas magras, lindas, que estão sozinhas." (Marli Caruso)
"Na hora de arrumar namorado, a gordura é uma barreira. Mas descobri que existem homens que gostam de mulheres gordas. Estou saindo com um cara que é atleta, faz academia, sempre vê corpos bonitos, e, de repente, se interessou por mim. Ele diz que eu sou dez." (Cristina Camarena, 30, relações-públicas, 1,65 m e 95 kg)
4. Gorda só namora gordo?
"Eu não tenho tesão por gordo. Não gosto de homem magrinho, mas também não precisa ser como eu. Tem que ser alto, peito largo e ter onde pegar." (Valéria Sandalo, atriz)
"Meu noivo tem 1,92 m e é magro. Nunca tive problema com gordura, mas vou ser sincera: namorei só uma vez com homem gordo. Acho que os opostos se atraem." (Marli Caruso)
5. Sexo com gorda é diferente?
"É errado falar em sexualidade de gorda. É sexualidade da mulher! Você tem banhas, mas cada um tem suas peculiaridades no corpo para lidar. Também não dá para ignorar. Tem posição na transa que não dá pra fazer. Mas é só adaptar." (Valéria Sandalo)
"Se eu tiver complexo, não vou para a cama com ninguém. Não tenho problemas com luz. Só porque apagou a luz, eu fico magra? Quando eu tiro a roupa, nenhum homem espera encontrar um corpo magro. Só compro lingerie bem sexy. Faz o maior sucesso com o meu noivo. Só porque sou gorda não posso ser sexy?" (Marli Caruso)
6. Gorda pode usar biquíni e roupa decotada?
"Uso biquíni numa boa. Gosto de ficar bronzeada. Prefiro roupas modernas. Uso muita calça fuseau, minissaia, bermudas, camisetas. O problema é que na maioria das lojas para gordinhos, as roupas não têm nada a ver com moda. Eu me sinto com 80 anos naquelas roupas". (Ana Lúcia Gonzales Sella, 40, psicóloga, 1,60m, 96 kg)
"Eu uso biquíni, me sinto muito bem assim. Eu me assumo. Ficar se escondendo não adianta. Quem não quiser olhar para mim, não olhe. Se a pobreza do mundo não incomoda, por que a minha barriga vai incomodar?" (Maria Cecília Estevez)
"Adoro ir à praia, não tenho problema com isso. Uso maiô cavado, mando fazer. Compro lingerie que nem gente magra usa. Tenho umas 40 fuseaus, uso roupa decotada, minissaia -tenho, modéstia à parte, pernas bonitas. Dentro dos meus padrões, uso de tudo. Mas é claro que tenho simancol, olho para ver se estou ridícula." (Marli Caruso)
7. Gordo come compulsivamente?
"Meu marido também é gordinho. Nós comemos muita massa, pizza à vontade. Beliscamos o dia inteiro. Na praia, levamos um monte de bugigangas para comer. Não vejo problema nenhum em sermos gordos, enquanto não comprometer a saúde." (Ana Lúcia Sella)
"Não como muito. O problema é que as coisas que eu como engordam. Adoro picanha. Quando a gente está tensa ou sozinha, se dedica mais à gula. Quando estou trabalhando, não me preocupo em comer." (Sônia Maria Lima)
"Você não engorda porque alguém assoprou em você, mas porque comeu demais, tem um desequilíbrio calórico estrondoso. Tem dia que como muito pouco, já tem dia que como muito. Aprendi a comer o que estou com vontade. Não adianta tentar substituir, porque engorda mais. Se eu quero comer chocolate e decido comer maçã, tenho que comer 48 maçãs para me sentir bem porque estava pensando no chocolate." (Soraya de Castro Guedes)
8. É possível ser feliz sendo gorda?
"Sou feliz. Quem é gordo tem duas opções: ou se aceita, e é feliz, ou faz um regime sério. Tem muita mulher que vem aqui e chora, diz que come muito porque tem que cozinhar para a família e acaba comendo também. Mas é preciso enfrentar o problema. As gordas vivem em conflito com elas mesmas, com raiva. Comem porque se sentem injustiçadas. Daí entram em conflito com a balança." (Amalia Aparecida Martins)
"O termômetro de felicidade de uma pessoa tem de estar no seu número de conquistas e não no número de quilos que ela pesa. Presto atenção em todas as coisas da minha vida. Estar obesa é uma delas. A partir daí, vivo normalmente. Você pode vir a emagrecer, mas seria apenas mais uma das suas vitórias, e não 'a conquista' da sua vida." (Soraya de Castro Guedes)
9. Gorda tem mais problema de saúde?
"Eu me preocupo com peso por causa da saúde. Tenho medo de ter um infarto. Eu era magra, mas tinha tendência para engordar. Depois que parei de jogar tênis, essa tendência virou realidade." (Claudia Grisi, numeróloga)
"Já pesei 80 kg, perdi 10 kg nos Vigilantes do Peso, porque eu me preocupo com a saúde. Faço check-up frequentemente. Estou com meu nível de colesterol em dia." (Maria Cecília Estevez)
10. É difícil ser aceita pelos outros?
"No trânsito, se faço algo errado, passa um imbecil e me chama de gorda burra. Magoa -é como virar para um aleijado e chamá-lo de sem perna. Uma vez, saindo do shopping, uns meninos me chamaram de bola de praia. Eu nunca tinha ouvido aquilo e chorei naquela noite." (Marli Caruso)
"Você chama um táxi, mas o motorista olha para a tua cara, pensa 'essa gorda vai estourar o meu banco' e passa reto." (Cláudia Grisi)
"Às vezes você chega nessas lojas de grife, que só vendem roupa para mulheres magérrimas, e o vendedor fica te olhando com aquela cara de 'aqui não tem nada para você'. Aí o gordinho entra e diz que quer comprar uma roupa para dar de presente, mas na verdade é para ele." (Suely Gonçalves, 35, modelo, 1,69m e 82 kg).

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