São Paulo, domingo, 19 de outubro de 1997
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Mãe afasta criança da tentação da comida

BERNARDINO FURTADO
DO ENVIADO ESPECIAL A ITAQUIRAÍ (MS)

Nos fins de tarde, os sem-terra mais afortunados do 8 de Março chegam da cidade a bordo de táxis carregados de mantimentos. Durante a revista obrigatória pelos "guardas" do acampamento, os carros são cercados por dezenas de crianças seminuas sujas de terra.
Um grupo de mães protesta contra a exibição das cargas de alimentos: uma perua Kombi leva melancias e sacos de laranja no bagageiro. As mães alegam que, ao verem as frutas, as crianças esfomeadas se iludem com a possibilidade de ganharem parte da carga.
Essa cena ilustra bem o grau crítico de miséria do maior acampamento de sem-terra do país. Mas há um segundo dado importante: o esquema militar montado pelos líderes do MST.
As revistas, segundo o líder Pipoca, têm o objetivo de evitar a entrada de armas de fogo e drogas. "É para não termos problemas entre nós e com a polícia", diz.
Pipoca reconhece que as revistas, feitas nos dois mata-burros (ponte de traves para evitar trânsito de animais) que dão acesso ao acampamento, fazem parte de um plano global de resistência em caso de cerco policial ou ataque de pistoleiros.
Além desses dois postos de vigilância, os acampados cavaram 38 trincheiras nos lados do quadrado formado pelos 2.000 barracos.
Ao lado de cada trincheira há uma tenda feita de bambu e lona para a vigia diurna e um rojão para ser disparado em caso de aproximação de pessoas estranhas. A explosão é a senha para os acampados formarem um cordão humano em volta do acampamento. Segundo ele, as crianças estão orientadas a acompanharem a comissão de coordenadores em caso de uma negociação com a PM na iminência da operação de despejo.
"Não se trata de colocar as crianças na linha de frente no caso de confronto com a PM ou com pistoleiros. É apenas para evitar que a comissão seja vítima de uma armadilha, sendo presa no momento em que se prepara para negociar", afirma Pipoca.
Num cotidiano de fome recorrente e de manobras "militares", as crianças têm poucas válvulas de escape. Uma delas é a represa situada no centro do acampamento, onde brincam e amenizam o forte calor de outubro. Para parte da criançada, a escola improvisada numa casa velha da fazenda se transformou numa segunda janela para a cidadania.
"A escola é boa porque faz a gente ficar grande", diz Bruno dos Santos, 8. O número de crianças que faltam frequentemente às aulas é grande, reconhece o professor Itamar Adolfo dos Santos.
Na última quarta, em reunião da coordenação, Santos fez um apelo para que os coordenadores pressionassem os pais a encaminhar as crianças para a escola, lembrando que o MST considera a educação prioridade máxima.
Nascido em Santos, o professor diz ter abandonado o curso de publicidade na Escola Panamericana de Artes, em São Paulo, para "tentar a vida" em Naviraí (MS), onde, segundo ele, foi atraído pela "luta dos sem-terra".
Santos integra a banda de reprovados na seleção feita pelo Incra no 8 de Março. Assim como ele, 50% dos acampados, segundo o Incra, não têm vínculos com a agricultura e, por isso, não estão aptos a receber um lote de terra da reforma agrária.

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