São Paulo, domingo, 19 de outubro de 1997
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Esquerdas fantasias

ROBERTO CAMPOS

Toda essa confusão das nossas esquerdas à procura de uma identidade diferente com que se apresentar às próximas eleições era previsível. Não chega a conter novidades. Já foi um "frisson" generalizado espinha abaixo na rapaziada quando da vitória dos trabalhistas na Inglaterra, e dos socialistas de Jospin, na França. Cenas de álbum de formatura, rosas vermelhas por todas as partes, saudosistas murmurando sobre um "renascimento" social-democrático. Mas não passou de reviramento da alma à procura de uma direção "em nome da rosa", como formulou "Der Spiegel", expressando a maneira de ver típica européia, onde a gangorra eleitoral britânica e francesa não desperta muito mais curiosidade do que uma zebra de futebol num campeonato estadual. Na realidade, o que aconteceu foi uma pequena mudança no estilo do espetáculo político. Tony Blair e Jospin mostraram-se sobretudo melhores apresentadores, com mais capacidade de empatia com o público (característica, notoriamente escassa, aliás, nos políticos que derrotaram). Blair rima com "flair", o instinto da coisa, sabendo dosar o thatcherismo básico com simpatia, enquanto que o bom e honesto mestre-escola Jospin, com seu jeito de avô, estava talhado para ganhar da elite intelectual, sentida pelo francês como arrogante, quase desdenhosa.
O mais complicado dos problemas de qualquer administração, de quem tem de decidir o que quer que seja -e de todos os governos, antes de tudo os de esquerda, porque eles pretendem decidir sobre um número excessivo de assuntos-, é o que os economistas chamam de "custos de oportunidade". Isso quer dizer, simplificando, que é preciso abrir mão de alguma coisa para se obter outra que se deseja. "Ou isto ou aquilo" é um dilema que todos nós encontramos todos os dias da nossa vida, e a grande atrapalhação dos políticos, em geral, não apenas dos "sociais". Veja-se na Europa. Para competir nos mercados globalizados, é preciso ter custos mais baixos, menores gastos públicos, menos impostos, flexibilidade no uso dos recursos, inclusive mão-de-obra. Mas o Estado Social implica maiores gastos e mais regulamentação. Como conciliar ao mesmo tempo o mais e o menos?
Não conheço nenhuma pessoa decente que não gostasse de ver todo o mundo feliz, com abundância material, assistida por todos os serviços úteis para a educação, a saúde, a cultura, o lazer, a seguridade -o bem-estar, em geral. Mas o quê sacrificar para ter esses bens? E como compatibilizar objetivos desejáveis -como maior igualdade, garantia de um mínimo decente para todos, preservação do meio ambiente, fraternidade entre as pessoas- com a desagradável realidade das burocracias governamentais? Que eficiência ou racionalidade se podem esperar de políticos e funcionários que deliberam sobre como gastar o dinheiro alheio, do qual não têm a idéia de quanto custa? O mundo poderia ser perfeito? Não. Isso não está nas nossas mãos. Não deve ser por aí.
O que atrapalha as nossas esquerdas é que elas são uma solução à procura de um problema. Antes do desabamento geral dos regimes socialistas, alguns ainda conseguiam manter-se fiéis às velhas idéias e palavras de ordem. Ilusões podem ser, como drogas, muito difíceis de largar. O único autêntico socialismo, o velho, tinha uma proposta. Achava que o mundo havia chegado à beira da abundância total, de modo que seria só distribuir. Só se precisaria de uma revolução que acabasse com a propriedade privada dos meios de produção, e beleza! Felicidade geral, fraternidade, bem-estar. Paz e amor. Logo alguns socialistas mais desconfiados se deram conta de que não era bem assim, que o negócio era preservar as formas democráticas e ir tirando dos que têm mais para dar aos que têm menos. Tampouco era grande novidade. Afinal, a caridade é uma virtude religiosa embutida na nossa civilização. E também não funcionou muito bem, porque inchou o Estado, gerou burocracias mandonas e privilegiados brigando uns com os outros para repartir as migalhas -e, no final, podou a eficiência da economia, de modo que acabou havendo menos para repartir. Mas, de qualquer forma, ninguém contesta que, no mundo complexo em que vivemos, é necessária uma rede eficiente de seguridade social, assim como a provisão, em caráter coletivo, de uma série de serviços, como escolas, hospitais etc.
O movimento liberalizante dos anos 80 foi uma resposta aos problemas cada vez mais intratáveis gerados pelos excessos e pela ineficiência crescentes do "Estado do bem-estar" que proliferou no contexto do brutal traumatismo da Primeira Guerra, e da sequela que foi a Grande Depressão dos anos 30. É um fato, nada mais, nada menos, não um devaneio ideológico. O "fim da ideologia" não é uma expressão nova, aliás. David Bell já a usou no final dos anos 50. Deu muito esperneio dogmático marxista, mas qualquer que seja o seu nome, o fenômeno é visível a olho nu.
E o que vem acontecendo no nosso país apenas entra na voga da maré universal. Depois de fincarem pé contra o Plano Real, as esquerdas, PT & Cia, levaram o grande susto: descobriram que o eleitor quer moeda estável, vida sem sobressaltos, ordem. E agora estão batendo cabeças para descobrir como atacar Fernando Henrique prometendo, ao mesmo tempo, fazer melhor do que ele o que o governo propôs na sua plataforma.
É claro que o governo não está acima de qualquer crítica. Tem sido bem melhor na formulação intelectual do que na gestão concreta. Mas essa não é uma questão ideológica. O Brasil é muito complicado, mesmo, e carrega uma herança pesada de problemas. Topicamente, analisando cada campo de ação, pode-se achar que haveria maneiras melhores de fazer as coisas. Nossas esquerdas, no entanto, não conseguiram sair da fantasia, sonhando com um bicho que não é cachorro, mas voa, nem é borboleta, mas tem dentes. Não tem um projeto consistente. Não só as nossas, aliás. O preço da sobrevivência eleitoral delas pelo mundo afora tem sido pendurar a ideologia, e tomar uns ares pacatamente aburguesados.
No Brasil, não há alternativa senão a disciplina da moeda, o esforço competitivo, e cabeça fria no cálculo de custos e benefícios. E salvo poucas prefeituras razoavelmente administradas, o PT & Cia. tampouco tem alguma experiência concreta a oferecer. Assim, não tem saída nem na teoria nem na prática. Claro que se compreende que não estão felizes com os desconfortos de ser oposição, agora que murchou a capacidade do Estado de distribuir vantagens por aí. Mas, pelo menos, poderiam ter feito um esforço de crítica séria, que forçasse o país a entrar a fundo no debate dos seus problemas.

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