São Paulo, domingo, 19 de outubro de 1997
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O centro e a economia solidária

ALOIZIO MERCADANTE

O centro da cidade sempre foi o ponto de equilíbrio de São Paulo. Com seu vigoroso patrimônio arquitetônico, foi se impondo ao longo dos séculos na majestade da Catedral da Sé e outros tantos monumentos que carregam nossa história bandeirante.
O centro dessa imensa cidade virou periferia. Quando qualquer um de nós caminha pelo centro descobre uma multidão que está sobrando na cidade. Os ambulantes vão se amontoando nas esquinas, vendendo qualquer coisa. Sempre o mesmo rosto sofrido, desesperado e pedinte, esperando o cliente cada dia mais distante. As crianças de rua, cheirando cola em pequenos grupos, estão por toda parte, incorporadas na paisagem, como se fossem um outro país, concreto e sem futuro. Elas existem incomodando os apressados homens de negócios, sobreviventes à crise social que degrada a poderosa arquitetura construída ao longo de séculos.
Chegar no centro está cada vez mais difícil, há até um rodízio de automóveis, quando não são os motoristas de ônibus que param a cidade para defender o direito ao trabalho, contra os motoristas das lotações clandestinas, que paralisam o outro lado de São Paulo pelo mesmo motivo.
São Paulo está em frangalhos. Um milhão de desempregados perambulando pelas ruas, na luta selvagem e degradante pela sobrevivência. No fim de semana passado foram 49 assassinatos. O prefeito segue passivo, às vezes tentando esconder a miséria crescente, perdido nas falcatruas e dívidas do governo que o elegeu herdeiro. E o Rio de Janeiro? O quadro é mais dramático. Balas perdidas, guerra de quadrilhas, cenas de violência e degradação social estão estampadas nos programas sensacionalistas que vão tomando conta do horário nobre: Ratinho Livre, Aqui Agora, Na Rota do Crime .... ou nos próprios jornais locais e nacionais, onde o Brasil oficial dos palácios de Brasília está sempre uma maravilha no sorridente presidente-candidato-em campanha. A questão social emerge irreverente, cada vez mais associada às páginas policiais.
Quem sabe o campo do Brasil continua na sua dinâmica parnasiana, sem miséria, fome e violência. Mas também lá estão os sem-terra, os que sobram e incomodam, porque existem enquanto lutam.
A arquitetura do medo avança nos muros, guaritas, alarmes e sirenes pela noite adentro nas grandes cidades do país. São mais de 100 mil vigilantes particulares, só em São Paulo. E as prisões abarrotadas vão exibindo suas monótonas rebeliões.
É verdade que esta imensa questão social é obra de séculos de subdesenvolvimento, mas a crise avança avassaladoramente para quem ainda quiser enxergar. Segundo o próprio IBGE, o nível de emprego industrial foi reduzido em 35% entre 1990 e 1997. No setor de serviços, o poderoso, lucrativo e bem protegido pelo Proer sistema financeiro fechou mais de 320 mil postos de trabalho neste período. Atualmente, apenas 40% dos trabalhadores estão no mercado formal de trabalho.
A economia informal é pouco estudada, mas a pesquisa recente do Ibase e do Sebrae revela que 64% dos entrevistados não possuíam qualquer tipo de previdência social.
O IBGE, com uma metodologia inadequada para um mercado de trabalho como o brasileiro, demonstra que o desemprego cresce e que aproximadamente 6% dos trabalhadores estão desempregados. Mas, para o Dieese-Seade, o índice de desemprego nos grandes centros urbanos está próximo de 14%. Se analisarmos as ações judiciais na Justiça do Trabalho, entre 1994 e 1996, vemos um aumento de 20,57%. E trabalhador só entra na Justiça quando é mandado embora, tentando reaver supostos direitos. Neste mesmo período de governo FHC, os pleitos de seguro-desemprego aumentaram 15,76%. E somente uma parcela dos desempregados pode ter acesso a este benefício provisório.
É nesse contexto de desemprego e fragilidade sindical que o governo privatizou a política salarial. Não há mais qualquer compromisso do Estado com os reajustes salariais, com um patamar mínimo para os salários. A própria CNI têm revelado que 60% das categorias profissionais não estão recebendo a reposição dos índices de inflação. Este modelo neoliberal tardio está agravando a crise e o apartheid social no Brasil.
O Plano Real foi concebido a partir do mesmo padrão dos programas de estabilização e ajuste aplicados na América Latina, a partir do final dos anos 80, inspirados no ideário neoliberal. Apesar das inovações e criatividade da URV na desindexação da economia, a estabilidade está fundada na articulação entre aumento acelerado das importações e absorção de recursos externos, onde a âncora cambial é o eixo da política econômica sempre associada à política monetária de juros altos.
As importações do país foram elevadas de US$ 25 bilhões, em 1993, para aproximadamente US$ 62 bilhões, em 1997. O país, com um déficit de transações correntes de US$ 34 bilhões, está vulnerável externamente e exposto a um ataque especulativo da moeda, além de fragilizado em suas finanças públicas. O que mantém este precário equilíbrio são as privatizações, mas poucas estatais sobrarão para o futuro governo.
O Brasil precisa se repensar com nação. Resgatar seu imenso potencial econômico para refundar a estabilidade no crescimento acelerado, nos investimentos produtivos, no trabalho do seu povo. A estabilidade não pode ser um fim em si mesma, mas um instrumento para um projeto sustentado de desenvolvimento. Devíamos estar debatendo mecanismos eficazes de aumentar nossa poupança interna, para depender menos do capital especulativo e volátil internacional.
Porém, não basta crescer aceleradamente e de forma sustentada. Se mantivermos uma taxa de crescimento do PIB em 7% ao ano, que essa armadilha câmbio valorizado-juros altos é incapaz de permitir, poderíamos absorver o 1,9 milhão de jovens que entram todo ano no mercado de trabalho. Isto é, poderíamos manter o nível atual de desemprego. Com essa taxa de crescimento a renda per capita cresceria em torno de 3% ao ano. Como temos 40% da população que recebe apenas 7% da renda nacional e está abaixo da linha da pobreza, precisaríamos de 20 anos para erradicar a pobreza absoluta no país. O Brasil não têm tanto tempo para incorporar seu povo às condições mínimas de cidadania.
O Brasil precisa voltar a crescer aceleradamente e não pode reduzir seu projeto de sociedade à lógica de mercado, ao individualismo e consumismo que o neoliberalismo vai difundindo cotidianamente pelos meios de comunicação. O Brasil precisa se reencontrar com a solidariedade. O Brasil ainda é um país que possui a nona indústria da economia internacional, detém um dos maiores estoques de terras do planeta e tecnologia disponível para resolver as questões fundamentais do povo como morar, vestir, calçar, estudar ou ter atendimento de saúde. É verdade que estamos fora da terceira revolução industrial, mas praticamente concluímos a segunda e, com ela, temos todas as condições para resolver as questões básicas do nosso povo.
Temos imensos recursos naturais e energéticos. Somos um país com uma população jovem e uma histórica vocação para crescer.
O Brasil precisa reagir e construir um projeto de desenvolvimento econômico sustentável, soberano e solidário. Uma economia reestruturada para distribuir renda, impulsionando um amplo mercado de consumo de massas. Hoje, a diferença entre os 10% mais ricos da população e os 40% mais pobres é de 28,9 vezes. Em países como Holanda, Bélgica, Japão esta diferença é de 4 vezes. Se distribuíssemos 7% da renda nacional para os 40% mais pobres eliminaríamos a pobreza absoluta.
O Brasil pode ser diferente e melhor do que tem sido. A economia solidária começa com esse compromisso maior de distribuir para crescer e crescer distribuindo. O Estado nacional têm de promover ações estratégicas, recuperar os mecanismos de fomento ao desenvolvimento e regulação da economia. O mercado interno poder criar as escalas necessárias para que possamos impulsionar as exportações. A economia solidária não se opõe à busca da competitividade, mas teria como grande meta enfrentar esse apartheid social e o desemprego em massa. Mecanismos como o crédito solidário, viveiros para micro e pequenas empresas, programas de requalificação profissional, políticas de geração de emprego e renda, a formação de cooperativas nesse imenso universo da economia popular de subsistência são dimensões fundamentais de uma nova perspectiva solidária de ser Brasil.
A oposição não pode mais se reduzir às denúncias e protestos. Nossa responsabilidade histórica é apresentar um projeto global e alternativo ao neoliberalismo. E, sobretudo, transformar os sentimentos de solidariedade, justiça social e fraternidade em políticas e propostas públicas concretas. O Brasil pode ser diferente, pense nisso quando voltar ao centro da cidade, essa nossa mais nova periferia.

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