São Paulo, domingo, 19 de outubro de 1997
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Miopia dos governadores

LUIZ CARLOS DELBEN LEITE

Não poderia ser mais esquizofrênica a discussão que se estabeleceu em torno da lei complementar nº 87 -a conhecida Lei Kandir-, que, entre outras coisas, desonerou do ICMS as exportações de produtos semi-elaborados e primários e também os investimentos fixos das empresas.
De repente, os Estados descobriram que o mecanismo de cálculo dos ressarcimentos -o chamado seguro-receita-, com o qual haviam concordado, não teria o efeito que desejavam. Na verdade, sabe-se que eles agora querem muito mais do que a simples neutralização das perdas decorrentes do incentivo: a garantia e a cobertura para eventuais diferenças em relação às suas (não poucas vezes) desvairadas projeções de aumento de arrecadação do imposto.
O choro e o coro dos governadores ganharam corpo quando constataram que a arrecadação do ICMS de todos os Estados no primeiro semestre, comparativamente a igual período de 96, havia crescido pouco mais de 1%. O desempenho, considerado fraco, foi logo atribuído à Lei Kandir.
É uma relação de causa e efeito impossível de ser estabelecida, pois pode-se argumentar, em contraposição à alegada ocorrência de perdas, que elas poderiam ter sido até maiores se não existissem os estímulos às exportações, à produção e aos investimentos.
Para aqueles governadores que, na perspectiva da reeleição, já haviam inflado seus orçamentos com base em projeções de receita pouco realistas, naturalmente não interessa ponderar outras possíveis variáveis para explicar o pequeno aumento da arrecadação efetivamente obtida. Recorreram à média, fórmula para eles conveniente, mas sabidamente inadequada para expressar a forte redução das taxas de crescimento de alguns Estados.
Não há dúvida de que o maior efeito visível da Lei Kandir foi o de ter afetado os devaneios de aumento de receita que alguns Estados alimentavam. O secretário de Finanças do Distrito Federal teve a coragem de assumir: em artigo recente, escreveu que a taxa de crescimento da arrecadação de ICMS no período janeiro-agosto deste ano sobre igual período de 96 "situou-se em apenas 6,8% em termos reais". Ele esperava 13,5%! Convenhamos que se trata de um sonho nada modesto, em face do prognóstico de que a economia do país terá uma taxa de crescimento três vezes menor.
De qualquer ângulo, não se pode questionar a validade dos fundamentos e objetivos das mudanças introduzidas na legislação do maior e mais abrangente imposto brasileiro (R$ 58 bilhões arrecadados em 1996).
Com a lei complementar nº 87, o país finalmente aproximou-se bem mais da moderna ordem tributária da maioria dos países, que se baseia no princípio da neutralidade da tributação. Com a tributação do valor adicionado, estamos desonerando o investimento em bens de capital e a produção em geral, por meio da constituição de créditos financeiros dedutíveis na apuração do imposto devido.
A lei corrigiu a absurda situação de tributar mais pesadamente o investimento do que o consumo, ao permitir que o produtor se credite do ICMS pago na compra de máquinas. Ela rompeu também a cadeia da tributação em cascata, reduzindo a disparidade de tratamento tributário em relação aos concorrentes estrangeiros. Nenhum país do mundo exporta imposto, exceto o Brasil.
Em meio a essa tosca discussão, movida por interesses políticos imediatistas, pouco se tem falado dos benefícios trazidos pela Lei Kandir, que fez a desejada reforma na sistemática de incidência do ICMS.
A legislação anterior, além de falha, vinha sendo alvo de frequentes contestações judiciais e, por essa razão, permitia a sonegação. Nesse sentido é que se deve destacar a criação da figura do "contribuinte substituto", um avanço que vem eliminar de vez, por exemplo, a brecha utilizada para a sonegação do ICMS incidente sobre combustíveis.
A regra agora é que, nas operações interestaduais com petróleo (inclusive lubrificantes, combustíveis líquidos e gasosos dele derivados) que tenham como destinatário o consumidor final, o imposto incidente na operação será devido ao Estado onde estiver localizado o adquirente e será pago pelo remetente.
Se fizerem um balanço isento, os governadores que reclamam discutíveis perdas certamente chegarão à conclusão de que seus Estados já começam a ganhar com as mudanças introduzidas na lei do ICMS.
Os efeitos sobre a cadeia produtiva, neste primeiro momento, já podem ser sentidos no setor primário, com os recordes de safra e nas exportações de produtos agrícolas.
A menor carga tributária decorrente da não-incidência do imposto e dos créditos financeiros está sendo compensada pelo aumento da produção, que será induzida pela conquista de novos mercados externos e pela alocação de investimentos crescentes.
Além disso, imposto menor viabiliza a redução de preços e os lucros dos setores beneficiários, com reflexos positivos óbvios sobre o emprego, a renda e a própria arrecadação, num processo irradiante de ganhos que interessa à sociedade, aos Estados e ao Brasil.
Por ora, o que se pede aos governadores é que, no mínimo, tenham paciência e grandeza para colocar o interesse nacional como o único valor perene a ser preservado. Afinal, as carreiras e aspirações políticas, como sabem muito bem, nem sempre resistem à próxima pesquisa de opinião.

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