São Paulo, domingo, 19 de outubro de 1997
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Uma premiação contestada

JONATHAN KNIGTH; NELL BOYCE
DA "NEW SCIENTIST"

A Assembléia do Nobel, normalmente calma, mergulhou de cabeça numa controvérsia acirrada há duas semanas, quando concedeu o Prêmio de Medicina de 1997 a Stanley Prusiner, o bioquímico que propôs a hipótese de que as proteínas podem provocar doenças contagiosas, como fazem os vírus e as bactérias.
A teoria de Prusiner é hoje a explicação mais aceita do grupo pouco conhecido de desordens cerebrais degenerativas que inclui a doença de Creutzfeldt-Jakob, a scrapie e a encefalopatia espongiforme bovina.
Mas, como uma minoria considerável de cientistas continua achando que o culpado é um agente infeccioso mais convencional, as reações à concessão do prêmio têm sido mistas.
No início de 1980, Prusiner e seus colegas da Universidade da Califórnia, em San Francisco, nos Estados Unidos, tentaram purificar a proteína que se forma nos cérebros dos animais que sofrem de scrapie. Mesmo quando o produto que isolavam parecia conter apenas proteína, continuava causando a doença quando injetado em roedores.
Proteína infecciosa
Prusiner teorizou que o agente, ao qual deu o nome de príon, fosse um proteína capaz de assumir mais do que uma forma. Uma dessas formas seria a que provoca a doença. Ele sugeriu que a versão malformada pode forçar a versão normal a assumir a forma doente. Com o passar do tempo, essa conversão insidiosa provocaria um aumento na quantidade de proteínas malformadas e acabaria por destruir o cérebro aos poucos.
A seguir, Prusiner produziu um clone do gene da proteína príon, chamado PrP, e mostrou que sua mutação poderia levar ao surgimento de doenças neurológicas. Enquanto isso, outros pesquisadores descobriram que camundongos que não tinham o gene PrP eram imunes a injeções de tecido cerebral contaminado por scrapie. Ao que parecia, a proteína PrP era necessária para o aparecimento da doença.
A persistência de Prusiner em levar adiante o estudo de sua teoria, mesmo quando confrontado pelo ceticismo generalizado, é indiscutível. "Prusiner é um verdadeiro cientista e um iconoclasta", diz Charles Weissmann, da Universidade de Zurique, na Suíça. "Ele fez ótima ciência e promoveu o avanço do campo", concorda Allen Roses, chefe de neurologia do Centro Médico da Universidade Duke, em Durham, Carolina do Norte, nos EUA.
Mas os céticos observam que ainda não existem provas cabais da veracidade da teoria de Prusiner. Eles argumentam que as proteínas purificadas dos cérebros de animais doentes podem conter um vírus esquivo.
O teste final seria demonstrar que príons sintetizados em laboratório causam a doença. Mas ninguém, até agora, conseguiu produzir uma quantidade suficiente do material para poder fazer a experiência.
Vírus X
Mesmo Prusiner agora afirma que alguma outra proteína, que ele chama de "proteína X", deve ser necessária para que ocorra a conversão do príon. Seus críticos sugerem que a proteína X seja, na verdade, um vírus X.
"Sempre falei que, se a hipótese do príon fosse confirmada, Prusiner mereceria o Prêmio Nobel", diz Hugh Fraser, ex-diretor da Unidade de Neuropatogênese do Instituto de Saúde Animal, em Edimburgo, no Reino Unido, e um adversário de longa data de Prusiner. "Mas tudo que a genética comprova é a necessidade de uma proteína".
Outra cética proeminente, a neurologista Laura Manuelidis, da Universidade Yale, em New Haven, Connecticut (EUA), foi mais ferina: "Eu o felicito por ganhar o Prêmio Nobel. É uma grande honra. Mas o verdadeiro prêmio é a verdade científica".
Mesmo alguns dos cientistas que acreditam que as idéias de Prusiner podem acabar sendo comprovadas acham que sua premiação foi prematura. Um pesquisador que preferiu se manter anônimo qualificou a premiação de "aprovação da propaganda como se fosse ciência". Ele teme que a publicidade gerada pelo prêmio possa dificultar a continuação das pesquisas. "As pessoas podem supor que está tudo feito e resolvido e se afastar".
No início da semana, rompendo sua norma habitual de não falar com a imprensa, Prusiner admitiu estar ciente das controvérsias que ainda cercam seu trabalho. "Prêmios não validam um trabalho científico", disse a um grupinho de jornalistas que o seguiu até uma reunião perto de Washington. "Só os dados o fazem".
Embora muitos pesquisadores digam que ainda estão aguardando esses dados, outros aplaudem a coragem da Assembléia do Nobel em não fugir da controvérsia. "Se o fazem pelo Prêmio da Paz, é certo que o façam por este", diz Roses.

Tradução de Clara Allain

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