São Paulo, domingo, 19 de outubro de 1997
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Assis expõe riscos da arte na Itália

Tremor na cidade ameaça obras do Renascimento

ANDREW GUMBEL
DO "THE INDEPENDENT", EM ASSIS

A população nas ruas de Assis anda dizendo que os recentes terremotos são um castigo de Deus, devido à vaidade dos frades franciscanos que cuidam dos edifícios religiosos da cidade. Também se comenta uma maldição que supostamente paira há muito anos sobre a grande basílica de São Francisco -um monumento que, segundo se diz, seria grandioso demais para o gosto do patrono da humildade.
Sejam quais forem as razões metafísicas, as evidências palpáveis dos tremores de terra das três últimas semanas são nuas e cruas. No dia 26 de setembro, painéis que integram as duas grandes obras-primas existentes na igreja superior da basílica -os "Quatro Evangelistas", de Cimabue, e "Os Doutores da Igreja Latina", atribuída a Giotto ou a um pintor de sua escola- caíram das abóbadas de tijolos em ambas as extremidades da igreja, matando quatro pessoas, e os abalos posteriores vêm provocando a queda de mais pedaços.
Especialistas técnicos começaram a mapear o telhado do edifício inteiro para encontrar maneiras de escorá-lo, visando impedir mais danos, mas ainda não ousaram fazer o mesmo com o interior, por temer mais tremores de terra.
Assim, o futuro de uma das construções mais importantes do início do Renascimento se encontra preso num terrível paradoxo estrutural: o risco de mais danos é tão grande que ninguém, até agora, teve a coragem de tomar as medidas necessárias para impedir esses danos. Por que essa calamidade nos atinge agora, em plena era da tecnologia, quando a basílica conseguiu sobreviver mais ou menos intacta por mais de sete séculos, numa zona notoriamente propensa a sofrer terremotos?
Uma resposta a essa pergunta pode ser inferida quando se olha para o buraco criado pela queda do painel de Giotto. No espaço entre o telhado e a abóbada se encontra a primeira de uma série de vigas de concreto que datam dos anos 1960. A presença delas pode ter representado a diferença entre algumas rachaduras no estuque e o desastre que acabou acontecendo.
Os representantes do Ministério da Cultura que decidiram substituir as velhas vigas de madeira por vigas de concreto, mais de 30 anos atrás, se defendem, dizendo que tiveram que determinar se a basílica correria risco maior em função de possíveis terremotos ou incêndios.
Esse é um exemplo do tipo de má avaliação que vem exercendo efeitos nefastos sobre obras de arte na Itália, nos anos recentes. É fato sabido que o Ministério da Cultura tem atuado como "depósito" onde os políticos gostam de empregar parentes e amigos que têm poucas chances de encontrar emprego em outros lugares. A minoria que realmente ama o patrimônio artístico italiano é tão mal paga e maltratada que apenas de vez em quando tem chance de exercer sua influência.
Isso, por sua vez, ajuda a explicar boa parte do que vem acontecendo na basílica desde o primeiro dos terremotos recentes. Foram feitos alguns trabalhos de valor, notadamente pelos restauradores de arte que quase terminaram de examinar os destroços da obra de Giotto e laboriosamente catalogaram todos os pedaços por tamanho, cor e, em alguns casos, pedaços figurativos claramente reconhecíveis. O rosto de São Rufino, por exemplo, já foi quase inteiramente recomposto e agora se encontra, em uma dúzia de pedaços diferentes, numa bandeja plástica repleta de areia.

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