São Paulo, domingo, 19 de outubro de 1997
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Segurança mínima

GABRIELA MICHELOTTI; IZABELA MOI; MARCELO LIMA

Prédios contratam vigias de empresas clandestinas e acabam deixando os apartamentos mais vulneráveis
Entre vigilantes regularizados e clandestinos, há 190 mil empregados no Estado de São Paulo
O setor de segurança privada movimenta R$ 1 bilhão no Estado de São Paulo por ano
R$ 441,09 é o piso salarial de um vigilante
POR GABRIELA MICHELOTTI E IZABELA MOI
COLABOROU MARCELO LIMA
Como nos filmes de máfia, os paulistanos estão pagando para não serem assaltados. O fenômeno não se restringe mais à periferia, alastrou-se para os bairros mais caros da cidade. Em Higienópolis e Moema, condôminos estão contratando empresas de vigilância clandestinas que, tudo indica, têm conexões com assaltantes.
Nada é explícito. Primeiro, o edifício é roubado -por ladrões bem-vestidos, não-violentos, que conhecem detalhes da rotina de porteiros e moradores. Depois, o síndico é contatado por empresas que oferecem vigias pela metade do preço que uma firma legalizada cobraria.
Podem ser apenas estranhas coincidências, mas não é o que pensam as vítimas desse novo tipo de violência. "Esse pessoal tem contatos dos dois lados. É como flanelinha, que você paga para não riscarem seu carro", diz João (nome fictício), síndico de um prédio em Higienópolis -bairro do presidente Fernando Henrique Cardoso e onde ficam a sede da Secretaria de Segurança Pública e a carceragem da Polícia Federal.
João conta que, no final do ano passado, foi convocado para uma reunião de síndicos do bairro. Um dos presentes propôs que fosse contratada uma empresa para fazer a vigilância das ruas, mas ninguém se interessou.
Em abril, o edifício de João foi roubado. Dois jovens, de terno, às 15h30, deram o nome e o número do apartamento de um morador -corretos- e entraram no prédio. Era horário da troca de porteiros. Eles conseguiram subir antes que o funcionário interfonasse, assaltaram um apartamento e saíram sem dificuldade.
Uma semana depois, um prédio na mesma rua foi assaltado. Os ladrões sabiam o nome do zelador e da mulher dele e conseguiram assim enganar o porteiro. Eram três assaltantes: um ficou na portaria fazendo as vezes de funcionário, enquanto os outros dois subiram.
"Depois do segundo assalto, todo mundo se sentiu vulnerável. Decidimos colocar polícia na rua", conta João. A administradora do prédio indicou uma empresa clandestina de segurança, que cobra quase a metade do preço -a empresa de segurança Habile pedia em torno de R$ 6 mil por um homem durante 24 horas, enquanto a clandestina cobra R$ 3.375.
No mesmo bairro, o síndico Jairo -nome fictício, porque ninguém quer se identificar com medo de represálias- conta que decidiu colocar vigias depois de sete assaltos na área em 96. "Hoje temos medo de dispensar o serviço. Sabíamos que seria assim, não daria para voltar atrás e, por isso, demoramos a tomar a decisão de contratá-los", diz.
Além dos seis homens que se dividem em turnos de oito horas e que protegem o quarteirão, Jairo e seus vizinhos contam com fios que rodeiam todo o prédio e são ligados a um sistema de alarme central, câmeras de vídeo e elevadores que só funcionam quando acionados pela senha do morador. "Você só consegue subir ou descer, digitando um número", explica.
O chefe da Delegacia de Controle de Segurança Privada, Jaber Saadi, alerta: "O perigo de usar um serviço não-regularizado é que você pode estar pagando o olheiro de um assaltante ou o próprio ladrão".
O delegado conta que, só neste ano, 100 empresas clandestinas foram fechadas na região da Grande São Paulo. Calcula-se que cerca de 300 ainda funcionem, empregando 100 mil homens.
Mais gente que a PM
O mercado da vigilância privada está em expansão. Regulamentadas, já existem 232 empresas, com cerca de 90 mil vigilantes -mais do que o contingente da PM para todo o Estado de São Paulo (80 mil homens).
Em uma empresa regularizada, os seguranças têm de fazer um curso de 15 dias e qualquer candidato com ficha na polícia é eliminado. "Quando você coloca uma pessoa desqualificada perto da sua casa, você possibilita que ela conheça seus hábitos, as fragilidades do local, o que há de valor. Você expõe um lugar que gostaria de manter protegido", diz Saadi, que cita o caso do menino Ives Yoshiaki Ota, sequestrado e morto por um segurança do pai no mês passado.
Já nas empresas de segurança clandestinas, a maioria dos funcionários é de policiais civis e militares -uma irregularidade, porque eles não podem fazer "bicos" ou ter outro emprego.
Neide, presidente de uma associação de moradores de Higienópolis, conta que o seu prédio optou por contratar PMs por causa do preço. "Como temos gente influente no grupo, checamos na secretaria de segurança se os policiais eram idôneos", conta.
O casal Ruth e Ricardo mora em um prédio em Moema, também vigiado por uma empresa administrada por um policial militar. "Ele tem 30 funcionários e fornece de vigias a zeladores", diz Ruth, que teme dar qualquer outro detalhe sobre o serviço.
Identificando-se como uma síndica à procura de segurança, a Revista da Folha falou com um policial civil que emprega 60 vigilantes. "Eu sou policial, então, eu mesmo dou as aulas práticas para treinar o meu pessoal. Terceirizar a segurança evita dor-de-cabeça. Se o condomínio não gostar da pessoa, é só me avisar que eu troco", explicou.
Jaulas de luxo
A proliferação da vigilância privada mostra que o paulistano rico está cada vez mais enjaulado. Não basta trocar a casa pelo prédio. Não basta colocar grades, interfones. Não basta contratar um porteiro noturno. É preciso vigiar a rua e sofisticar os sistemas internos de controle.
Os últimos equipamentos incluem monitoramento feito 24 horas por dia por meio de uma linha telefônica. Ao sentir-se ameaçado, o morador liga para um número de telefone e dá a sua senha, a empresa de segurança manda um carro imediatamente e avisa a polícia.
Por um canal de TV a cabo, dentro do apartamento, é possível ver quem está no elevador, garagem ou portaria. "Ao sermos informados pelo porteiro que alguém está subindo, podemos verificar se é realmente aquela pessoa ou um possível assaltante", diz a empresária Susana Pires, 45, síndica de um prédio no Morumbi.
O caminho entre a portaria e o apartamento tem cada vez mais barreiras: depois de ser anunciado pelo interfone, um segurança acompanha o visitante até o elevador, onde ele precisará saber uma senha (ou ter a senha liberada pelo morador) para subir ao apartamento.
No prédio de Susana, entregadores de pizza e flores estão proibidos de entrar. Uma vez anunciados, eles passam por um primeiro portão e deixam a encomenda em uma portinhola adaptada no segundo portão exatamente para isso.
Pedreiros, encanadores, eletricistas e até faxineiras diaristas só entram se o dono do apartamento tiver deixado seu nome e R.G. na portaria no dia anterior.
Quem quiser dar uma festa de aniversário, precisa enviar à portaria o nome de todos os convidados e seus acompanhantes. Quem não está na lista é barrado e só poderá subir se o aniversariante for até a portaria e liberar a entrada pessoalmente -não adianta usar o canal de TV.
O prédio gasta R$ 281 por mês no monitoriamento dos aparelhos eletrônicos e R$ 3.200 com o vigilante armado. Todos os funcionários -de faxineiros a porteiros- têm ficha de antecedentes criminais levantadas pela administradora antes da contratação.
"Uma vez, uma pessoa conhecida passou pela portaria sem ser anunciada. O porteiro foi mandado embora na hora. Acontece de alguns novos moradores serem impedidos de entrar, porque o porteiro não os reconhece. Mas eu não me sinto em uma prisão. Pelo contrário, quanto mais segurança, mais livre eu me sinto", afirma Susana, que está se empenhando agora em colocar câmeras na garagem, "a única coisa que está faltando".
No Tatuapé, zona leste da cidade, a dona-de casa Solange Lasalete Ortegosa, 50, tem à disposição um esquema semelhante. Seu prédio tem dois portões na entrada, sendo que um dá acesso apenas à guarita. Um sistema de vídeo mostra a entrada, elevadores, que podem ser vistas por qualquer um que sintonizar o canal 10 na TV a cabo.
Entregadores e empregados eventuais são acompanhados por um segurança até a porta do apartamento do morador. Visitantes têm de usar um crachá e não podem circular nas áreas comuns. "Se um jovem quer trazer os amigos, deve ficar no apartamento ou fora dos portões do prédio. Nenhum estranho é permitido aqui dentro", explica Solange, que aprova o sistema.
Para o arquiteto e urbanista Cândido Malta, todo esse engaiolamento faz com que as pessoas percam a noção do que é espaço público. "Aos poucos, a própria cidade perde sentido. As pessoas se reúnem e formam cidades justamente para viver em comunidade, fazer trocas e se beneficiar do convívio. O medo e a insegurança, inspirados pelos altos índices de violência, têm isolado as pessoas atrás de grades", diz Malta.
Redutos devassados
Além de isolar e às vezes ser perigosa, toda essa parafernália de segurança custa caro. Em Alphaville (zona sul), que já foi considerado um oásis na cidade, cerca de 70% dos gastos do condomínio são com patrulhamento, controle da portaria e câmeras filmadoras. O resultado, diz o gerente da administração do residencial 1, Itiro Katsurayama, é que "não há assaltos em Alphaville".
Temos pequenos furtos, feitos por ladrões menores, conta. No último final de semana, foram sete desses "pequenos furtos" nos residenciais 0 e 1. Os "ladrões pequenos" entraram nas casas em que os donos estavam viajando e levaram dinheiro e jóias.
"Não descarto a possibilidade de ter sido alguém da própria segurança ou funcionários do condomínio, porque essa média de furtos é anormal e todos os casos foram em casas vazias", diz o delegado-assistente do Distrito Policial de Barueri, Josias Teixeira de Souza.
Souza alerta os moradores que contratam seguranças privados: "Se a escolha for bem feita, pode ajudar a diminuir a criminalidade. Caso contrário, pode se tornar um problema ainda maior e gerar mais insegurança".
Em uma prova de coragem, o empresário José Carlos Alves, morador do condomínio Aldeia da Serra, conta sua história: "Saí de Moema porque buscava segurança. Mas minha casa foi furtada em julho. No mesmo dia, houve mais quatro furtos, também em casas vazias. Levaram sempre jóias. Testemunhas viram seguranças na minha casa, mas eles alegaram que tinham entrado para perseguir o ladrão. Eu tinha resolvido mover um processo por invasão de privacidade, mas desisti por medo de represálias. Eu saio para trabalhar todos os dias, mas a minha família fica lá. Preferi ficar quieto, mas sei que os furtos continuam. As pessoas não dão o nome por medo. Mas, se continuarmos nos omitindo, as coisas vão continuar como estão."

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