São Paulo, segunda-feira, 10 de novembro de 1997
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A outra face, Jorgina na minha cabeça

FERNANDO GABEIRA
COLUNISTA DA FOLHA

Curiosidade visual nesse episódio que terminou com a prisão da advogada Jorgina de Freitas: a comparação de suas fotos, da Baixada Fluminense para Miami.
Ela não só mudou como também estimulou nossa imaginação, quase como naquele filme do Travolta, em que as pessoas mudam totalmente de rosto. Os cabelos de Jorgina ficaram mais encorpados, surgiram marcas mais salientes, olhos maiores, rasgados.
Para a imprensa, ela, fugitiva da Justiça, fez tudo isso apenas para se disfarçar. Versão plausível, se a reduzirmos a uma fugitiva. Mas olhando-a como mulher, sentimos que estava esculpindo um novo rosto e estava muito mais segura dele do que nas velhas fotos do tempo em que advogava na Baixada.
A nova face de Jorgina deve ter feito muita gente sonhar com as imensas possibilidades que a cirurgia plástica desbravou nos últimos anos. Michael Jackson é um exemplo vivo dessa tendência de se redesenhar radicalmente, sem perder o contato com a imagem anterior. Jorgina e Michael Jackson têm milhões de dólares e isso confere a eles um poder pessoal de se aproximarem de uma fantasia que têm de si mesmo, de se esculpirem a partir de suas características plásticas.
Jorgina tinha, se são verdadeiras as acusações contra ela, dinheiro suficiente para se tornar irreconhecível e comprar novos documentos. Não levou às últimas consequências a lógica de fugitiva. Mas levou a de mulher que queria mudar seu rosto, tornar-se mais bela.
Grande parte das pessoas prefere envelhecer deixando que os cabelos embranqueçam, que as rugas se definam. É uma opção de beleza, às vezes uma opção ética. Mas quem pode condenar algumas pequenas mudanças, sentidas com uma grande melhoria, levantando o astral do paciente?
A trajetória de Jorgina mostra que essa flexibilidade foi impulsionada pelo dinheiro e por um deslocamento para Miami. Mas quem pode prever que, no futuro, essas chances continuarão apenas entre os ricos? Um aumento de produtividade, uma necessária ampliação do mercado não abririam as clínicas para um cliente com pouca grana?
O rosto de Miami não é apenas produto dos dólares, mas também de novas informações. É muito possível que essas informações, por meio dos astros da TV, acabe chegando antes que a própria baixa de preços.
Se contarmos que a clonagem humana ainda está longe do horizonte e pode ser evitada, o redesenho da face passa a ser uma das conquistas típicas deste século. Sempre houve algum tipo de operação e as máscaras desempenhavam um papel que não desempenham mais hoje. Mas a história de Jorgina é também uma página da ciência, além de ser um fato policial.
Pode-se argumentar que era mais bonita na Baixada, que, de certa forma, embranqueceu como Michael Jackson. Isso é também uma consideração político-moral. Cada pequena modificação expressa um certo ideal de beleza.
Mas a verdade também é que ela tinha outras alternativas, poderia mudar em outra direção, que resta sua capacidade de mudar o rosto, esse passo novo no fim do século, o desejo humano de ser o outro, aproximando-se ao mesmo tempo do ideal de si mesmo.
Uma súbita fortuna, arrancada de aposentadorias falsas, talvez seja apenas a história de um novo rico. Mas pode-se vislumbrar, por meio desse ângulo que momentaneamente encobre o lado policial do fato, os contornos de um possível futuro. Um tempo em que a combinação de práticas ancestrais, como o piercing, e a mais sofisticada cirurgia plástica atualize o fracasso humano na sua busca da eterna juventude, reduzindo-a a um encontro com o possível.
A busca da eterna juventude pode fortalecer a tendência de anular os traços da velhice, de negar a beleza dos anos do rosto. Isto já se manifesta na série de cirurgias do próprio Michael Jackson, que, às vezes, dá a impressão de querer se congelar numa idade. Seria necessário contrabalançar essa busca estéril, com a felicidade de milhares de pessoas que corrigiram alguns traços de seu rosto, ou mesmo os que foram mais radicais e mudaram de sexo.
Vamos ver, talvez, no princípio do século 21, um outro passo: caras e corpos transformados se acoplando a pequenas máquinas, cérebros artificiais. Ainda há tempo para se preparar para essas mudanças. Mas desde já é bom ter Jorgina em nossa mente.

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