São Paulo, terça-feira, 11 de novembro de 1997
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Intervalo especulativo

ANDRÉ LARA RESENDE

Perdi a conta dos aflitos que encontrei nos últimos dias. Peço, contudo, licença para um intervalo. Um intervalo especulativo. Sim, especulativo, mas não no sentido em que a palavra tem sido exaustivamente usada. Um intervalo reflexivo.
A crise das últimas semanas desvalorizou as Bolsas em toda parte. Foram perdas pesadas. Apesar da popularização dos fundos de ações pelo mundo afora, a verdade é que, para a grande maioria, o investimento em ações é algo tão desconhecido, quanto complexo e arriscado. Está, entretanto, claro que não é possível descartar a queda das Bolsas como um fenômeno irrelevante, restrito aos interesses de uma minoria.
Deixo de lado as razões de caráter macroeconômico mais invocadas: o capitalismo financeiro desse fim de século está definitivamente interligado, os ciclos econômicos de tal forma sincronizados, que tudo, em toda parte, a todos afeta. Concentro-me na sensação de insegurança, de instabilidade, que acompanha a evaporação de riqueza de forma tão súbita e imprevista.
O mundo sempre foi inóspito e perigoso. A vida é difícil e dominada pela necessidade. Segurança, abundância e felicidade, não apenas como objetivos alcançáveis, mas como direitos, são noções relativamente recentes. O palco de ação da vida deslocou-se do domínio público para o domínio privado. A moderna descoberta da intimidade, do refúgio na subjetividade, foi acompanhada pela transformação do conceito de riqueza, antes indissociável da propriedade imobiliária. A riqueza como propriedade sempre esteve relacionada ao domínio público. Ser proprietário, significava ter seu lugar numa determinada parte do mundo e, portanto, pertencer à cidade política.
Em seu extraordinário livro, "A Condição Humana", Hannah Arendt, observa que a dissolução do domínio público na esfera do social -entendido como o mero coletivo do privado- refletiu-se na transformação progressiva dos bens imóveis em bens móveis, que terminou por retirar da distinção entre propriedade e riqueza, toda significação. A riqueza, tendo perdido seu valor de uso privado na arena política, tomou um significado exclusivamente social, econômico. Tornou-se consumível, seu valor deixou de ser determinado pela sua situação, para adquirir um caráter meramente social. A referência passou a ser a moeda, único denominador comum diante da flutuação permanente dos valores relativos.
Ainda segundo Hannah Arendt, a hipótese de Locke, segundo quem toda riqueza tem origem no trabalho é historicamente discutível, mas tornou-se verdadeira, dado que, nas condições modernas, a única propriedade garantida é nosso talento, nossa força de trabalho. Arendt distingue trabalho de obra. Enquanto a obra é pública, política e tem permanência, o fruto do trabalho é social, transitório e consumível.
Como a modernidade glorificou o trabalho, a riqueza moderna é um aglomerado de consumível, intrinsicamente transitório. A possibilidade de adiar seu uso só existe circunstancialmente, através da convenção social da moeda. A riqueza moderna é financeira e etérea, seu valor, mais do que nunca, uma convenção que depende da possibilidade de transformá-la em mais consumo futuro.
Terrível vingança da modernidade, esta que transforma em futilidade, a fecundidade da produção, em falta de sentido, nossa pretensão de superar a ditadura da necessidade, e frustra nosso mais profundo anseio: o desejo de concretude e permanência.

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