São Paulo, sexta-feira, 14 de novembro de 1997
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A real história de Mojica Marins

PATRICIA DECIA
DA REPORTAGEM LOCAL

Quase toda uma geração conheceu José Mojica Marins mais pela bizarrice do personagem Zé do Caixão do que por seus filmes propriamente ditos. Mas por trás das unhas compridas, da capa e da cartola, há uma história intimamente ligada à do cinema no Brasil.
Essa é a história -recheada por fatos mirabolantes, como não poderia deixar de ser- contada no livro "Maldito - A Vida e o Cinema de José Mojica Marins, o Zé do Caixão", dos jornalistas André Barcinski e Ivan Finotti.
Com lançamento previsto para 13 de março -aniversário de 62 anos do cineasta, uma autêntica sexta-feira 13-, o livro foi realizado a partir de 30 horas de entrevista com Mojica, mais de cem depoimentos e intensa pesquisa.
Nesse processo, os jornalistas descobriram que muitos fatos sobre o criador do terror brasileiro, divulgados desde os anos 50, não são verdade.
Para Barcinski, há um "passado forjado" de Mojica, que deve ter começado por acaso, numa entrevista em 1953. Na ocasião, ele mentiu a idade temendo que ninguém levasse a sério um cineasta de 17 anos. "Tivemos de pesquisar a vida que ele diz ter vivido e a que ele realmente viveu", disse Finotti.
O livro mostra que é a vida pessoal que se altera, maquiando uma realidade formada por extrema falta de dinheiro, problemas com a censura e alcoolismo, flutuando em torno de sua dedicação quase religiosa ao cinema.
A história forjada inclui uma pretensa riqueza com direito a mansão no Morumbi (na verdade, Mojica vivia com mulher e dois filhos num apartamento de apenas um quarto). A imagem é reforçada por seus filmes da década de 70, em que aparece sempre como um milionário.
Em certa época, passou a dar entrevistas "encarnando" o personagem Zé do Caixão. Contava que, quando nasceu, um morcego entrou no quarto, como um mau presságio. Afirmou que pretendia tomar LSD para criar cenas de terror apavorantes. Dizia ainda que tinha 21 filhos de 7 "esposas". Teve sete, de três mulheres.
Ao contrário do que se imagina, são verdades partes escabrosas de sua vida cinematográfica, como os testes de coragem que ele impingia aos candidatos a atuar.
No estúdio montado em uma sinagoga abandonada no Brás (região central de São Paulo), ele submetia os alunos (garçons, operários, empregadas domésticas) a comer minhocas com groselha, beber champanhe num crânio, deitar-se entre cobras e até ser enterrado vivo. Mas "Maldito" vai além das histórias bizarras. Coloca Mojica entre os grandes cineastas brasileiros, por ter feito filmes originais "sem nunca ter estudado, sem nunca ter aberto um livro de teoria, sem contar com amigos influentes".
Talento, inventividade, capacidade de improvisação são adjetivos usados pelos autores para comentar a obra de Mojica, especialmente os filmes da que é considerada sua melhor fase, os anos 60.
Foi nessa década que ele criou o coveiro Zé do Caixão, o vilão de "À Meia-Noite Levarei Sua Alma", após ter um terrível pesadelo (leia trecho nesta página).
O personagem que poderia ter deixado Mojica rico de fato estrelou mais três filmes no período, foi para a TV, para as histórias em quadrinhos e virou garoto-propaganda de diversos produtos, de pinga a fortificante para as unhas.
Tudo o que ganhou nesse período ele perdeu rapidamente. Sem dinheiro, transformou-se em animador de festas e aceitava qualquer "bico" para sobreviver, como faz até hoje.
Os filmes com Zé do Caixão são cheios de blasfêmia, anticlericalismo, sexo e violência. Tudo isso acompanhado de uma fotografia expressionista e discurso, para uns, próximo ao do filósofo alemão Friedrich Nietzsche.
Não passaram pelo crivo da censura, que interditou totalmente dois deles, cortou e alterou os finais de outros dois. Um boletim inédito da censura, que estará no livro, mostra que uma censora chegou a recomendar sua prisão.
"Hoje não se tem idéia nenhuma sobre quem é o Mojica. Em parte, a culpa é dele, mas também da organização política do cinema brasileiro nos anos 70", disse o autor.
Segundo Barcinksi, a criação da Embrafilme, em 1969, foi fatal para a carreira do cineasta, que não conseguia mais verba -centralizada então pelo governo- para as produções.
A última década viu um certo resgate de Mojica, especialmente pelo lançamento de seus filmes nos EUA, que agora conhecem pelo menos uma face do "Coffin Joe".

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