São Paulo, sexta-feira, 14 de novembro de 1997
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A originalidade de um gênio

CARLOS REICHENBACH
ESPECIAL PARA A FOLHA

Foi em 1965 que, fugindo da fumaça das bombas de gás lacrimogêneo em plena avenida São João, eu e um amigo nos separamos dos manifestantes que eram dispersados por senhores à cavalo.
Corremos até a suntuosa entrada do cine Art Palácio e, sem enxergar o nome do filme em cartaz, compramos os bilhetes e entramos.
Na tela, imagens toscas de um interior miserável. Uma procissão de figurantes indigentes é vilipendiada por um cidadão asqueroso de capa preta, unhas enormes, barba pontuda e cartola.
Os nossos olhos, agredidos pelo cintilar da projeção na tela de alumínio, queimavam como fogo. "O que é isso, meu Deus? É sério?" O cidadão na tela, apesar do português empostado, muitas vezes cortando esses e dobrando erres, parecia buscar o cerne de seu discurso em Nietzsche e Spengler.
Zé do Caixão foi paixão à primeira vista. Voltei para rever "À Meia-Noite Levarei Sua Alma" umas duas vezes.
Em 66, então aluno da Escola Superior de Cinema São Luiz, fui testemunha da apresentação que o mestre Luís Sérgio Person fez de um desconhecido: "Querem fazer cinema? Aprendam com as imagens inéditas desse inventor nato!" Talvez essa tenha sido a mais bela lição que ganhei em toda minha atividade discente.
É preciso buscar uma linguagem própria: original, sincera e incorruptível. Tal como Mojica Marins, Humberto Mauro, Glauber e todos aqueles que jamais abdicaram de seu universo, suas paixões e, sobretudo, de sua maneira pessoal e intransferível de ver o mundo.
O mundo de Zé do Caixão é o Brasil mais primitivo. Servil. Bárbaro, mas submisso. Da cachaça envenenada, do linchamento tolerado, da boçalidade cotejada. Um país feio de encarar num cinema instintivo e cuja modernidade irrompe da gramática cinematográfica mais primária.
Mojica aprendeu cinema vendo filmes ordinários e devorando gibis. O requinte de sua linguagem está justamente no rigor da câmera imóvel, das sombras profundas, das trucagens infames, dos cortes abruptos e da cenografia arcaica. É preciso amar desesperadamente as raízes para entender Mojica.
Se não bastassem obras-primas como "Esta Noite Encarnarei No Teu Cadáver" e "O Despertar da Besta", Mojica criou um herói abominável com a mesma dimensão trágica do alter ego de Glauber.
Zé Do Caixão e Antônio Das Mortes: dois personagens contraditórios, ícones da demência nativa, espelhos da esquizofrenia social de uma nação em transe. São eles que justificam a eternidade da nossa cinematografia.

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