São Paulo, sábado, 15 de novembro de 1997
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"Há de tudo na vida, até mortos que escrevem aos matadores"

ARMANDO ANTENORE
DA REPORTAGEM LOCAL

No dia 13 de maio de 1926, o poeta e ficcionista Mário de Andrade matou Monteiro Lobato. Foi um assassinato simbólico, cometido em um artigo de jornal, mas que teve resultados concretíssimos.
Contribuiu para cristalizar a imagem reacionária do criador de Dona Benta, Emília, Narizinho e outros tantos personagens de alcance popular.
Ainda hoje uma parcela da crítica, e mesmo da academia, encara o editor e escritor paulista como inimigo do modernismo -o movimento que, sob inspiração das vanguardas européias, procurou renovar as artes brasileiras a partir dos anos 20.
Uma carta inédita e um livro recém-lançado ("Monteiro Lobato - Furacão na Botocúndia") demonstram que, na realidade, o intelectual de Taubaté (SP) e os modernistas cultivaram relação bem mais ambígua do que se costuma propagar.
Em três décadas de convivência, se agrediram muito, mas também partilharam elogios e se ajudaram.
A carta -que a Folha divulga pela primeira vez- traz a data de 6 de agosto de 1930 e a assinatura de Lobato. Ele, à época, trabalhava como adido comercial em Nova York e escreveu para "seu matador", Mário de Andrade.
Dava-lhe notícias de um editor que manifestara o interesse de traduzir "Macunaíma, o Herói sem Nenhum Caráter" e colocá-lo à venda nos EUA. O livro, que Mário publicou em 1928, é um dos marcos do modernismo.
Na carta, Lobato não apenas falava do editor como se dispunha a intermediar o lançamento do romance por lá.
Logo às primeiras linhas, abraçava a ironia e dizia estar escrevendo "dalém túmulo".
Mais adiante, comentava: "É incrível como dá voltas o mundo! Vou eu ajudar o Mário a publicar-se neste país (...). Vou sair da cova só para isso".
Com bom humor, o missivista tentava quebrar o gelo que já durava quatro anos -embora, na carta, erre os cálculos e acabe se definindo como "um morto que você (Mário) matou há três anos".
O autor de "Macunaíma" aceitou a trégua e, em 31 de agosto, enviou a resposta junto com dois exemplares do livro.
Admitia que "uma proposta de tradução pro inglês só pode ser agradável pra um literato do Brasil". Mas se confessava incapaz de imaginar o romance em outra língua. "Careceria tirar muita coisa, e mais transportar que traduzir."
Também ressaltava que não tinha ambições de "ganhar dinheiro com literatura ou literatice". Mesmo assim, autorizava Lobato a procurar de novo o editor norte-americano.
Somente no último parágrafo da correspondência, mencionava o violento e extenso artigo que produzira em 1926 para o jornal carioca "A Manhã", sob o título de "Post-Scriptum Pachola", e que decretava a morte do escritor.
Era uma menção muito rápida, que antecedia votos de felicidade -tudo num tom mordaz, quase ofensivo: "No mais, seu vingado morto-vivo, viva feliz aí no comercinho de Nova York, como e quanto quiser. Porém nada neste mundo me impede de desejar você morrendo de fome nestes brasis".
Os esforços do "morto-vivo", sabe-se hoje, não surtiram efeito. "Macunaíma" só ganhou uma edição nos EUA em 1984.
Avesso
Três pesquisadores -Carmen Lucia de Azevedo, Vladimir Sacchetta e Marcia Camargos, os mesmos que assinam "Furacão na Botocúndia"- localizaram a carta de Lobato para Mário.
Encontra-se no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP) e compõe um acervo que reúne milhares de correspondências recebidas pelo poeta modernista.
Guardadas sob sigilo por cinco décadas, saíram da sombra em julho. Depois de resumi-las e catalogá-las (um trabalho que durou mais de dois anos), o IEB as colocou à disposição do público. Quem desejar lê-las, no entanto, precisa pedir permissão para a família dos remetentes.
Quando teve acesso à carta de Lobato, o trio de pesquisadores já havia concluído "Furacão na Botocúndia" -uma alentada biografia do escritor, com cerca de 300 ilustrações.
O livro, portanto, não reproduz a correspondência. Mas cita a carta em que Mário autorizava Lobato a contatar o editor dos EUA.
A referência está no capítulo "Moderno pelo Avesso". São 17 páginas em que os autores procuram historiar o relacionamento dos modernistas com o pai de Jeca Tatu.
Logo de início, recordam o célebre artigo contra a pintora Anita Malfatti que Lobato publicou há 80 anos num jornal paulista -e que, mais tarde, quando saiu em livro, recebeu o título de "Paranóia ou Mistificação?".
Depois de ver uma exposição da artista, o escritor lhe atribuiu um "talento vigoroso, fora do comum", mas a condenou por se deixar seduzir pelas vanguardas européias, por assumir "uma atitude estética forçada no sentido das extravagâncias de Picasso & Cia.".
A crítica indignou o poeta Menotti del Picchia, Mário de Andrade e outros amigos da pintora que, em 1922, promoveriam a Semana de Arte Moderna.
Inaugurou-se, assim, a polêmica que iria se estender pelas próximas décadas e que impingiu a Lobato não só o rótulo de conservador como a culpa por uma suposta "regressão estética" de Anita.
Gandhi
"Furacão na Botocúndia" enumera alguns fatos que, à semelhança da troca de cartas sobre "Macunaíma", relativizam a propalada rixa. Confira:
* Em 1921, o pintor Di Cavalcanti, um dos precursores do modernismo, manifestou o desejo de se tornar colaborador da "Revista do Brasil", comandada por Lobato.
* Em 1922, a editora do escritor lançou dois livros de modernistas -"O Homem e a Morte", de Menotti del Picchia, e "Os Condenados", de Oswald de Andrade, ambos com capa de Anita Malfatti.
* Em 1943, Oswald classificou Lobato como o "Gandhi do modernismo". "Se Anita e nós tínhamos razão, sua luta significava a repulsa ao estrangeirismo afobado (...), às decadências lustrais da Europa podre. Esqueçamos a estética (...) e estendamos a mão à sua oportuna e sagrada xenofobia".
Entre um momento de distensão e outro, porém, a discórdia se insinuava. Na década de 40, por exemplo, em depoimento para o "Jornal da Manhã", Lobato voltou a ironizar os modernistas, como apontam seus biógrafos.
Alardeou que, finalmente, resolvera aderir às vanguardas. "Estou fazendo uma aquarela para derrotar Pablo Picasso: uma mulher com cinco olhos, seis cristas e um bico de galo."
Lembrando que Mário de Andrade lhe preparara um necrológio "por causa da arte moderna", completou: "Tenho esperança agora de que (...) ressuscite".
A propósito -Lobato morreu em julho de 1948, 22 anos depois de Mário o matar.

Livro: Monteiro Lobato - Furacão na Botocúndia
Autores: Carmen Lucia de Azevedo, Marcia Camargos e Vladimir Sacchetta Lançamento: editora Senac
Quanto: R$ 59

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