São Paulo, quinta-feira, 20 de novembro de 1997
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O pacotaço e o 'de que'

PASQUALE CIPRO NETO
COLUNISTA DA FOLHA

"Um dia, vivi a ilusão de que ser homem bastaria..." Assim começa uma canção de Gilberto Gil. De onde Gil tirou o "de que"? É simples: ilusão de alguma coisa.
Alguém tem ilusão de viver melhor, de conseguir o que quer, de aprender com esta coluna etc. Em termos técnicos, diz-se que o substantivo ilusão rege a preposição de.
Percebe-se, pois, que Gil não inventou a expressão "de que". Ela realmente tem razão de ser. Daí a "ilusão de que ser homem...".
Em "As Rosas Não Falam", Cartola diz: "Volto ao jardim, com a certeza que devo chorar...". A certeza é de alguma coisa: certeza de vitória, certeza de conseguir etc.
Mestre Cartola preferiu omitir a preposição de, o que é até possível, segundo muitos gramáticos conceituados.
É bom que se diga que também seria possível usar o de pedido por certeza: "Com a certeza de que devo chorar".
A conclusão parece óbvia: em certos contextos, é até possível omitir a preposição de, que, no entanto, sempre será bem-vinda, quando realmente algum termo a solicitar, como certeza e ilusão.
E o que o pacote econômico tem com a história? Quem assistiu à entrevista coletiva concedida pela equipe econômica no último dia 10 deve ter tido congestão de "de que". Um dos membros da equipe, cujo nome é melhor não citar, abusou do direito de usar a bendita expressão: "O governo considera de que"; "Não nos parece de que esse caso"; "Penso de que não será" etc.
Santo Deus! De onde o homem, graduadíssimo, professor, tirou tanto de? Os verbos considerar, pensar e parecer pedem a preposição de? É óbvio que não. Alguém pensa algo, alguém considera algo, algo parece a alguém. Onde está o de? Perguntem ao homem.
Nada de "de que": "Não nos parece que", "Penso que", "O governo considera que".
Ainda bem que não estava lá um outro ministro, também fanático pela pérola.
Alguns linguistas (alguns), idiotas, dirão que a língua falada não merece reparo, que a fala é sempre boa etc. Esses ociosos não conseguem perceber que os homens não estavam na mesa de um boteco, batendo papo. Estavam falando para o país, sobre um assunto técnico, usando linguagem teoricamente culta.
Quem assiste a esse tipo de transmissão normalmente acredita nessas pessoas, tem-nas como modelo. Adolescentes que vão fazer vestibular ouvem o cidadão dizendo "de que, de que, de que" e acham que isso é o máximo. A Fuvest faz uma questão a respeito, como já fez há dois ou três anos. E muitos, ingenuamente, erram. E alguns idiotas, ociosos, dizem que a fala é sempre boa, que isso e aquilo.
Haja estômago! Que fique claro: omitir o de antes do que, em certos contextos, é até possível. Inventá-lo é dose.
*
Na coluna da semana passada, escrevi: "algumas pessoas, cujo nome ele prefere não revelar". Vários leitores perguntaram por que o singular (nome). É simples. Quando uma mesma propriedade se estende a vários seres, não é preciso o plural. Ninguém diria "O pai e o filho foram operados dos corações". Cada um tem um coração. Basta dizer que foram operados do coração.

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