São Paulo, quinta-feira, 20 de novembro de 1997
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Incerteza é o centro de "Dom Casmurro"

FRANCISCO ACHCAR
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em "Dom Casmurro" (1900), de Machado de Assis, um velho escreve um livro para contar sua vida e, assim, tentar recuperar, de alguma maneira, o passado perdido -perdido não só porque passou, mas por ele achar que o perdeu ao vivê-lo, enganou-se, não entendeu bem o que se passava.
Sua tentativa é de, como ele diz, "atar as duas pontas da vida" e ver se consegue, agora que é o Dr. Bento Santiago, apelidado de Dom Casmurro (no sentido de "homem calado e metido consigo"), reencontrar o Bentinho que namorou Capitu, casou com ela, separou-se dela sob suspeita de adultério com seu melhor amigo e se afastou do filho que acreditava não ser seu.
Portanto, o romance é apresentado como memórias do narrador, o livro com que ele, depois de muitos anos, vivendo solitário e em parte retirado, tenta recompor a figura incerta de sua vida frustrada.
É um livro "avançado" para o Realismo, moderno, tanto por sua história quanto por sua escrita e estrutura. A história, no fundo, é a história de um livro -um livro frustrado, que não cumpriu sua finalidade em relação à vida, pois não pôde contê-la, representá-la.
E esse livro é o que o leitor tem em mãos, incerto até quanto a seu título: já no primeiro capítulo, "Do título", ele é deixado em dúvida sobre se Bentinho, agora Dr. Bento, é mesmo casmurro, pois muita coisa indica que não seja. No jogo de incertezas da trama, quase nada fica definido.
"Dom Casmurro" é um exemplo extraordinário de "obra aberta", obra organizada de forma a admitir sentidos diversos e mesmo incompatíveis entre si.
Mário de Andrade conta de um entusiasta de Machado que, ao reler o romance, espantou-se com o que considerou sua "imoralidade" (seria uma defesa cínica do adultério): em inúmeras leituras anteriores, sempre acreditara tratar-se de uma história "moralizante".
Trata-se de um dos maiores livros escritos em língua portuguesa, um dos grandes romances do século 19, em âmbito internacional.
Ele pode ser lido em vários planos: há o plano da história, envolvente, até divertida, mas intrigante porque não é conclusiva quanto ao seu nó central (Capitu traiu ou não traiu Bentinho?); há o plano da análise das personagens e das relações sociais, em que Machado revela sua penetração extraordinária, psicológica e sociológica, sempre destilando seu veneno discreto, mas corrosivo; há também o plano da grande estrutura da narrativa, em que o centro não é o adultério ou qualquer evento particular da história, mas a incerteza -a incerteza da vida e a incerteza do livro.

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