São Paulo, quinta-feira, 27 de novembro de 1997
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O direito constitucional ao aborto legal

Consequentemente faz-se emergencial garantir às mulheres um atendimento na rede pública de saúde

FLAVIA PIOVESAN e
SILVIA PIMENTEL
A Câmara dos Deputados retomou esta semana a intensa discussão do projeto de lei (já aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça) que institui o atendimento pela rede pública de saúde dos casos de aborto legal. O projeto regulamenta a realização de aborto nos casos de risco de vida da gestante e gravidez resultante de estupro -hipóteses previstas pelo Código Penal há mais de 57 anos.
O direito ao aborto legal e à sua regulamentação estão em absoluta consonância com a ordem jurídica brasileira, ao contrário do que afirmam alguns juristas, como o deputado federal Hélio Bicudo e o professor Ives Gandra da Silva Martins. Sustentam ambos que a discussão do aborto legal não tem levado em conta a ordem constitucional, em especial seu artigo 5º, que consagra a inviolabilidade do direito à vida. Por fim, concluem que a Constituição de 1988 não recepcionou a legislação penal concernente ao aborto legal.
Importa alertar quanto à impropriedade jurídica dessa conclusão.
A Constituição Federal anterior também assegurava a inviolabilidade do direito à vida (vide o art. 153 da Constituição de 1967), não sendo essa uma inovação da Carta de 1988. Essa Constituição, no artigo 5º, garante a "inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade". Esses direitos, ainda que fundamentais, não são, contudo, absolutos. Os seus contornos jurídicos são delineados pela Constituição, diante de um complexo sistema valorativo.
A ordem jurídica, ao consagrar a inviolabilidade do direito à liberdade, por exemplo, permite limites ao exercício da liberdade de expressão quando proíbe a incitação à discriminação racial. O mesmo ocorre com a inviolabilidade do direito à propriedade, na medida em que a Carta de 1988 exige que seja cumprida sua função social. Esses direitos não são previstos de forma ampla e ilimitada, pois o conteúdo de sua inviolabilidade é definido a partir de um dinâmico e complexo processo de disputa entre valores constitucionalmente assegurados. É por isso que, nesses casos, o valor da liberdade há de ser conjugado com o da tolerância, o valor da propriedade com o da justiça social.
O mesmo raciocínio se aplica às hipóteses de aborto legal, na medida em que não se pune o aborto quando não há outro meio de salvar a vida da gestante ou se a gravidez resulta de estupro. Por que não punir o aborto nessas hipóteses? Porque o valor da vida deve ser conjugado com o valor da dignidade humana. Entendeu a legislação penal que não seria razoável punir criminalmente uma mulher que sofre risco de vida fatal, necessitando a interrupção da gravidez. Entendeu também a legislação penal que não seria razoável punir criminalmente uma mulher que já sofreu a traumática e dolorosa violência do estupro, sendo submetida a um tratamento cruel e degradante.
São essas situações que, por sua gravidade, autorizam a interrupção da gravidez, afastando-se, assim, a punição do aborto. O valor constitucional protegido, nessas hipóteses, é a vida e a dignidade de tantas mulheres.
O aborto legal há de ser tratado como uma questão relacionada à cidadania e à saúde pública, e não como uma questão de "polícia". A saúde pública, por sua vez, é direito fundamental assegurado pela Carta de 1988. Consequentemente, nas hipóteses de aborto legal, faz-se emergencial garantir às mulheres um atendimento na rede pública de saúde que seja digno e confiável.
A faculdade das mulheres de serem atendidas pelo poder público, pelas redes públicas de saúde, nas hipóteses de aborto legal, é um direito assegurado pela Constituição e é um compromisso do Estado brasileiro reafirmado nas Conferências de Mar del Plata (1993), Cairo (1994) e Pequim (1995). O maior impacto desse projeto será interromper a dor, as sequelas e as mortes que alcançam tantas mulheres e que advêm, principalmente, da clandestinidade.

Flavia Piovesan, 29, procuradora do Estado, é professora de direito constitucional e de direitos humanos da Faculdade de Direito da PUC-SP, doutora em direito constitucional, membro do Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem) e conselheira do Conselho da Condição Feminina.

Silvia Pimentel, 57, é professora-doutora em filosofia do direito da Faculdade de Direito da PUC-SP, coordenadora nacional do Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem), membro do Conselho Diretor da Comissão de Cidadania e Reprodução e conselheira do Conselho da Condição Feminina.

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