São Paulo, domingo, 14 de dezembro de 1997
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ABC, desemprego e Pilatos

ALOIZIO MERCADANTE

Os trabalhadores do ABC, depois de quase 20 anos, voltam ao Paço Municipal de São Bernardo para escrever "emprego" com o próprio corpo.
As montadoras automobilísticas, com lucros fantásticos nos últimos anos, favorecidas pelo regime automotivo, que protege o setor com tarifas de 70% sobre as importações, anunciam demissões em massa, como resposta à queda substancial das vendas em decorrência do aumento dos juros e do pacote fiscal.
É inaceitável a completa omissão do governo federal diante do mais dramático problema social do país, o desemprego.
O presidente FHC vinha mantendo um discurso que o problema de desemprego era localizado. O presidente-sociólogo chegou a cunhar a inovadora expressão dos "inempregáveis". Agora, com a recessão imposta pelas medidas econômicas do governo, FHC retoma a postura do regime militar, atacando e procurando desqualificar os indicadores de desemprego do Dieese-Seade.
E coerente com toda a trajetória neoliberal de seu governo, que já privatizou a política salarial, privatiza as demissões: "Acho positivo que eles (patrões e empregados) entrem em negociações, mas não sou nem trabalhador nem dono de empresa e não sei, nas condições específicas, o que é melhor" (...) "O país vive uma nova época, na qual não há populismo, nem participação do governo nas negociações entre patrões e empregados". É muito grave a completa omissão do governo diante desse cenário.
Em primeiro lugar, o desemprego é o maior desafio social de toda a economia internacional neste final de século. O novo padrão tecnológico está impondo uma profunda mudança na própria natureza do trabalho. Nos EUA a agricultura emprega menos que 3% da força de trabalho e a indústria, que há 30 anos empregava 34% da força de trabalho, absorve hoje menos de 17%. Os aumentos da produtividade são fantásticos e eliminam de forma crescente os postos de trabalho. No próprio setor de serviços, com a automação bancária, informatização de escritórios e grandes redes de distribuição, o processo de reestruturação também tem significado desemprego crescente.
Em segundo lugar, no caso brasileiro, esse cenário é agravado pela política econômica centrada na âncora cambial e juros elevados que inspirou o Plano Real. As importações cresceram mais de 150% nos últimos três anos. O país está totalmente vulnerável ao capital especulativo internacional, com um déficit de transações correntes de aproximadamente US$ 34 bilhões. A crise da Ásia abalou as condições de financiamento externo e continua em evolução. O país está com a maior taxa de juros da economia internacional, além do pacote fiscal e os sinais de aumento violento das demissões aparecem em toda parte, particularmente no setor de bens de consumo duráveis.
Em terceiro lugar, não adianta querer quebrar o termômetro porque o desemprego cresce. A metodologia do IBGE para o desemprego aberto é apropriada para países desenvolvidos que possuem uma cobertura ampla e prolongada do seguro-desemprego. Nela o desemprego é de 6% porque só está desempregado quem procurou emprego na última semana e não teve qualquer forma de remuneração. Para o Dieese-Seade o índice incorpora, além do desemprego aberto, o desemprego oculto por desalento e pelo trabalho precário. O período considerado para a pesquisa é os últimos 30 dias, por sinal como ocorre nos EUA, Alemanha, França e Itália, sendo que no México e Chile o período é de dois meses. E o critério inclui ainda os que simultaneamente procuram emprego, mas realizaram alguma atividade descontínua e irregular, porque aqui não há outra forma de sobrevivência em função da precariedade do seguro-desemprego.
A metodologia do Dieese-Seade é muito mais apropriada a um mercado de trabalho como o brasileiro e nela o desemprego superou o patamar de 16,5% na Grande São Paulo, ou seja, 1,428 milhão de desempregados. Quem ainda tem dúvida deve dar um passeio pelo centro da cidade.
Com o agravamento da crise, a indústria automotiva está entre as que anunciam demissões em massa. Os empresários forçam a redução da jornada com redução dos salários. A Força Sindical já assinou o acordo do pescoço com a guilhotina. O governo, tão ágil e generoso com o Proer na crise dos bancos, agora não quer se envolver. Porém, se essa política se generalizar, como quer a Fiesp, vamos contrair ainda mais a demanda, aprofundando o processo recessivo. Se os trabalhadores ganham menos, gastam menos, as empresas vendem e investem menos e o desemprego aumenta, não diminui. Ainda que do ponto de vista microeconômico possa ser uma saída precária e provisória, para o conjunto da economia é um desastre, pois agrava a recessão.
O setor já demonstrou que existem outras possibilidades, como em 1992, por meio das câmaras setoriais. Na oportunidade o governo reduziu alíquotas de impostos, as empresas contraíram a margens de lucro, os preços dos produtos caíram e as vendas aumentaram. As câmaras setoriais mantiveram o nível de emprego, permitindo que todos ganhassem na negociação. E o governo, com a retomada das vendas, arrecadou mais impostos, apesar da redução das alíquotas. Por que não reativar as câmaras setoriais, abrindo um novo processo de negociação no âmbito da cadeia produtiva, permitindo soluções mais criativas e menos recessivas que a redução da jornada de trabalho com redução de salários? O governo não vai arrecadar mais aumentando o IPI para automóveis. E todos estão perdendo com o agravamento da recessão e do desemprego.
O governo não quer as câmaras setoriais ou qualquer mecanismo democrático e público de negociação. Prevalece no governo a omissão recomendada pelo ideário neoliberal, onde só o mercado regula a economia. A indústria fechou 35% dos postos de trabalho entre 1990 e 1997. O país precisa de uma nova política econômica e de política de emprego. A redução da jornada de trabalho é um dos grandes instrumentos de partilhar os ganhos de produtividade. A Hewlett Packard, na França, e a BMW, na Alemanha, reduziram a jornada de trabalho de 37 para 31 horas, sem redução de salários. Em troca os trabalhadores aceitaram o sistema de turnos. Na França, o governo de Jospin está sinalizando a possibilidade de reduzir impostos para empresas que voluntariamente reduzirem a jornada de trabalho. Trabalhar menos, para trabalharem todos e viver melhor é uma das grandes bandeiras sindicais neste final de século para tentar repartir com mais justiça os imensos ganhos de produtividade das empresas.
É evidente que a redução da jornada para avançar tem de ser internacional, mas existem outras importantes políticas de emprego que poderiam ser ativadas em larga escala nesse momento de crise, como a reforma agrária, programas de requalificação profissional, o crédito solidário, o cooperativismo e o fomento à pequena produção familiar de subsistência.
Os metalúrgicos do ABC mais uma vez são a vanguarda social da classe trabalhadora, estão novamente contra a parede, mas resistem e procuram negociar. Enquanto isso, sem o riso exuberante que demonstrava nos jantares nos palácios da monarquia inglesa, nosso presidente com certo enfado é obrigado a se pronunciar sobre temas tão mundanos como a tragédia do desemprego, que seu governo insiste em tentar ocultar: "É preciso agora que os empresários também façam esforço para que o trabalhador não pague o preço daquilo pelo qual não têm culpa". Enquanto milhares são demitidos, outros são humilhados pela redução dos salários e o presidente honoris causa lava as mãos como Pilatos.

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