São Paulo, quinta-feira, 18 de dezembro de 1997
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A Fisiologia do Campeão

RODRIGO BERTOLOTTO
DA REPORTAGEM LOCAL

Os corpos dos jogadores do Vasco e do Palmeiras viverão neste domingo, dia da final do Brasileiro-97, uma revolução interna.
O interior de um campeão começa o dia da decisão com insônia na madrugada e termina, na noite seguinte, puxando da memória os planos para as férias.
A Folha mostra abaixo as reações orgânicas por que passa um jogador de futebol, desde a concentração, passando pelas refeições, entrevistas, o jogo propriamente dito e terminando na comemoração em uma boate.
Com o auxílio do médico Turibio Leite de Barros, professor de fisiologia esportiva da Escola Paulista de Medicina, a final é descrita do ponto de vista do organismo daqueles que vão estar em campo.
*
0h10 - Iniciar processo para dormir. Posição horizontal. Corpo relaxado. Detectado problema: hiperatividade da memória. As ordens do treinador, a cobrança do presidente, os gritos da torcida não param de se aglomerar.
1h30 - Caíram todas as linhas de comunicação dos sentidos. Motivo: a formação reticular fez diminuir a atividade cerebral. O batimento do coração começa a diminuir -deve chegar a 30 por minuto durante o sono.
10h - Retomado o contato com os sentidos. Hipotálamo detecta sede e fome. Solução: descer para o café da manhã.
10h30 - Aviso gustativo: doce. Aviso de textura: fofo. Avisar ao estômago que em seis segundos está chegando um pedaço de pão com geléia. Logo mais, virão iogurte, leite, bolo e biscoito. O duodeno já está de prontidão para absorver os nutrientes, e o fígado, a postos para armazená-los.
11h - Comunicado dos olhos: excesso de incidência de luz. Secretar lágrima para a resistir à iluminação dos flashes das TVs. Por favor, acionar no cérebro o setor de frases feitas e falas de auto-afirmação.
13h - Papilas gustativas voltam à ação: macarrão com molho de tomate, frango grelhado e purê. O fígado tem de preparar a operação "recarregar energia", para nova armazenagem de glicogênio. Estômago dá a boa notícia: salada presente para auxiliar a digestão.
13h30 - Todas as unidades: desviar fluxo de sangue para estômago e intestino. Digestão privilegiada, evitar esforço nas brincadeiras na concentração do time.
14h - Esôfago avisa: passando cápsulas de aminoácido e carboidratos. Chamando estômago, duodeno e fígado. Instrução: preparar assimilação do complemento alimentar.
15h - Relatório da audição: técnico começa palestra. Concentrar sentidos. Descarga de adrenalina na circulação sanguínea: censura severa em público do treinador. Sistema nervoso autônomo comanda mudança na postura. Fique ereto.
15h45 - Músculos extensores e flexores da perna, iniciar caminhada em direção ao ônibus.
16h - Acionar no cérebro centro de coordenação motora e memória musical (seção de pagodes, últimos sucessos). Batucada no corredor no ônibus. Pôr em ação memória de movimentos rítmicos (passos de dança número 3). Hipotálamo detecta aumento da temperatura corpórea e ordena que as glândulas sudoríparas iniciem trabalho.
16h45 - Sensores de tato confirmam superpopulação na entrada do estádio. Atrito com corredor de corpos, microfones, canetas e fardas policiais relatado ao cérebro. Acelerar movimentação em direção ao vestiário.
17h - Ouvidos informam: ruídos da arquibancada denotam que o estádio está lotado. Nova descarga de adrenalina na circulação. Coração, aumentar os batimentos para 80 por minuto.
17h15 - Alongar músculos e aquecer corpo. Triplica o metabolismo. Atenção, glândulas sudoríparas.
17h50 - Acionar a memória religiosa (Padre Nosso, Ave Maria). Nova instrução: cerebelo pede postura para subir escada para o campo. Rápida leitura visual revela bandeiras, faixas, fumaça dos rojões e o gramado. Cérebro percebe sensação de medo: diminui o fluxo de sangue para a pele e há um leve aumento do suor.
18h - Audição informa: ruído estridente. Visão avisa: braço estendido do juiz e bola em movimento.
18h10 - Metabolismo ao máximo: dez vezes mais ativo que antes do jogo. Dilatar artérias e veias. Coração, acelerar batimentos até 180 por minutos. Glândulas sudoríparas, força máxima.
18h15 - Contrair quadríceps e relaxar músculo flexores da perna para iniciar pique de 20 metros no ataque adversário. Oxigênio insuficiente. Solução: músculos comecem fermentação para obtenção de energia. Urgente: queimar glicose. Repito: queimar glicose. Fígado já foi avisado para remover a produção excedente de ácido láctico. Visão: bola saiu pela linha de fundo.
18h20 - Detonar nova ação do quadríceps e dos músculos flexores. Objetivo: alcançar lançamento. Contrações e distensões rápidas para chegar antes do zagueiro. Visão avisa: auxiliar levantou a bandeirinha em sinal de impedimento. Cérebro ordena parar movimento.
18h30 - Receptores tácteis da perna detectam contato com o rival. Cérebro ordena salto para o chão. Puxar da memória procedimento em casos de dor intensa. Simular sofrimento.
18h35 - Receptores de dor da perna anunciam: agora o chute do adversário doeu. Comunicado dos nervos ao cérebro: dor aguda no tornozelo. Ordem: não se mexer. Visão: médicos se aproximam. Olfato: cheiro de álcool e éter. Sensação provisória é de resfriamento da área afetada. Diminuiu a dor.
18h45 - Reabastecer reserva de água. Perda contabilizada: 1,5 litro de líquidos. Estômago estima em três copos de água.
19h10 - Visão: juiz se aproxima com a mão no bolso de sua camisa. Nova descarga de adrenalina. Visão: cartão amarelo. Acionar centro motor no cérebro e iniciar gestos memorizados de protesto.
19h25 - Sangue se concentra. Hipotálamo informa desidratação. Boca relata ao cérebro sentir secura e gosto ruim. Iniciar movimentos para o cuspe.
19h39 - Olhos avisam: bola alçada na área. Cerebelo exige adotar postura de salto. Cérebro prepara contração dos músculos das pernas para impulsão. Comunicado dos sensores tácteis da cabeça: impacto contra a bola.
Cérebro avança e se choca contra a calota craniana. Notícia da visão: objeto que se chocou com a cabeça parou nas redes. Ouvidos relatam gritos de gol no ambiente exterior.
19h47 - Visão informa: juiz aponta para o meio-campo. Audição comunica: novo ruído sibilante. Revelada a presença de endorfina no cérebro. Sensação de euforia geral. Receptores tácteis: toque de vários braços sobre parte externa do corpo. Memória alerta para a possibilidade de ascensão profissional, pagamento do bicho e possível venda para o futebol europeu. Nova descarga de endorfina.
20h10 - Atenção, bíceps e tríceps, músculos do braço: erguer objeto metálico. Contrair músculos faciais e dirigir lábios até estabelecer contato com o troféu.
20h20 - Detectada serotonina na área cerebral. Aumenta a sensação de fadiga. Informe da visão: funções estão momentaneamente comprometidas. Relatório de baixas: três litros de líquidos e sais minerais. Alerta: Baixa presença de potássio. Abortar segunda volta olímpica.
20h40 - Pôr em ação seção da memória responsável pelo armazenamento dos hinos de clubes (opção 1, canção da atual equipe).
21h30 - Visão: presença da mulher e de familiares. Dilatar pupila. Medula espinhal: organizar movimentos amorosos dos braços. Nervos da face: fechar pálpebras. Sensores tácteis da fase percebem líquido escorrendo pelas bochechas.
22h - Papilas gustativas avisam que em seis segundos um pedaço de torresmo estará chegando ao estômago.
22h30 - Informe panorâmico dos olhos: néon, leões-de-chácara, torcedores e jornalistas na frente da casa noturna.
22h40 - Duodeno, por favor, colocar ao máximo sistema enzimático de digestão. Ataque de gordura do torresmo do jantar em família de 40 minutos atrás.
23h20 - Informação do campo visual: lâmpadas multicoloridas iluminam taças de champanhe à frente, que indicam ingestão de álcool a qualquer minuto. Boca contraindo, esôfago esfriando, estômago se mexendo. Alerta ao fígado para iniciar desintoxicação.
23h40 - Visão: dirigente se aproxima da mesa. Resgatar na memória a sessão de promessas de renovar contrato.
0h - Novo alerta da memória, esquecer futebol e planejar férias: opção 1 (Miami), opção 2 (Nordeste) ou opção 3 (fazenda comprada no mês passado).

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